Luis Guerra

Luis Guerra

Tempo de férias

A chegada do calor faz-nos despertar imagens relacionadas com o tempo de férias, de acordo com as memórias de cada um e a oferta da indústria do lazer.

Contudo, quer estejamos dentro ou fora desse grupo, não podemos deixar de inquietar-nos pelas notícias que informam que cerca de 35% dos portugueses não terá rendimentos suficientes para as férias deste verão, enquanto cerca de metade do total dos cidadãos nacionais não tenciona fazer férias este ano, provavelmente quer pelas razões invocadas quer por razões de prudência.

O direito a férias constitui um direito humano universal e tem consagração constitucional, embora, neste último caso, reservado aos trabalhadores por conta de outrem.

O legislador constitucional terá entendido ser necessário reforçar a proteção dos trabalhadores por conta de outrem neste domínio e assumido que os trabalhadores independentes teriam uma condição económica suficiente para poder gozar férias por sua conta.

Na verdade, se nos lembrarmos que, aquando da aprovação da Constituição da República Portuguesa em 1976, este grupo social era constituído essencialmente por profissionais liberais e empresários em nome individual e que o mesmo era minoritário, essa norma constitucional fazia todo o sentido.

Contudo, a paisagem social alterou-se radicalmente nos últimos quarenta anos, tendo diminuído substancialmente a percentagem da população trabalhadora por conta de outrem, especialmente com contrato de trabalho por tempo indeterminado, a qual foi sendo substituída por trabalhadores temporários e prestadores de serviços diversos, alguns dos quais em situação de subordinação económica, cujos rendimentos são, muitas vezes, insuficientes para fazer face aos encargos normais da vida independente ou, ao menos, para permitir poupanças substanciais que lhes permitam conceder-se um tempo razoável de férias sem auferir rendimentos.

Acresce a esse facto que a percentagem de idosos aumentou consideravelmente na sociedade portuguesa, muitos dos quais com pensões de reforma reduzidas, e que a pandemia veio destruir milhares de empregos, sobretudo no setor do alojamento, restauração e diversão, agravando a situação no que respeita ao gozo efetivo do direito a férias.

Esta realidade faz-nos recordar o processo histórico de reconhecimento do direito a férias - feito de jornadas de luta e reivindicação, mas também de negociação e concertação, que visaram a humanização das condições laborais - e a sua importância para o aumento do bem-estar e da produtividade dos trabalhadores, bem como, por tabela, da paz social.

Em todo o caso, os inquéritos efetuados mostram também que o próprio conceito de férias evoluiu, na medida em que as noções de repouso e, sobretudo, de lazer, abrangidas por aquele, também se modificaram.

Noutro tempo, a ociosidade era um modelo de vida, somente ao alcance dos aristocratas ou, em sociedades esclavagistas, dos senhores dos escravos. Na medida em que o trabalho era assegurado por estes últimos ou por outros servos, aqueles podiam aplicar a sua energia livre noutras atividades, em alguns casos mais edificantes (o progresso do conhecimento) e noutros mais desinteressantes (o tédio ou a intriga) ou mesmo mais destrutivas (a guerra e a conquista), consoante primava um propósito humanizador ou o vazio existencial e os interesses mais imediatos e mesquinhos.

Porém, os tempos mudaram e as elites sociais entregam-se agora ao trabalho qualificado, em muitos casos fazendo longas jornadas laborais e obtendo, com isso, reconhecimento social, ao mesmo tempo que aumenta o chamado desemprego estrutural, sobretudo no domínio do trabalho não qualificado.

Paralelamente, o advento das máquinas trouxe consigo uma promessa de libertação do ser humano do jugo do trabalho, mas a mesma está ainda longe de se cumprir, apesar do contributo da tecnologia para facilitar as tarefas mais pesadas e ampliar as possibilidades humanas. Ainda assim, não é claro como se resolverá no futuro a questão da redistribuição do rendimento à medida que se for incorporando mais tecnologia nos processos produtivos e aumentando o desemprego estrutural.

É nesse contexto que surge a proposta do rendimento básico incondicional, uma prestação pecuniária do Estado a todos os cidadãos, pelo simples facto de existirem, que lhes permita satisfazer as suas necessidades básicas, independentemente de terem ou não outros rendimentos, bem como da continuidade dos serviços públicos nas áreas da educação e da saúde.

Os problemas técnicos de implementação desta proposta não branqueiam o mérito da mesma de abrir um novo horizonte de possibilidades para a humanidade, em que a vocação passe a ser o motor da atividade pessoal, sem a pressão da necessidade de sobrevivência.

Não será a resposta a todos os problemas da humanidade, mas poderá abrir espaço para a expansão da criatividade humana, o crescimento da felicidade e a diminuição da violência e isso já não é pouca coisa.   

 

Luís Filipe Guerra, juiz e membro do Centro Mundial de Estudos Humanistas

[email protected]


Partilhar:

+ Crónicas