“Todas as vidas contam“
No passado dia 25 de Maio de 2020 nos E.U.A. em Mineápolis, foi brutalmente assassinado George Floyd, que foi sufocado por um agente da autoridade, que se ajoelhara sobre seu pescoço por mais de 8 minutos, ingnorando os apelos e os avisos do próprio George Floyd, da sua dificuldade em respirar.
Esta execução, violenta e exercida por um policia americano e com a cumplicidade dos seus companheiros, foi capturada em vídeo por uma testemunha, imagem responsável pela onda de indignação que tomou o país, chocou o mundo inteiro, sucedendo-se várias manifestações.
Uma indignação explosiva também, na medida em que existiu uma conotação racial, ou seja, um polícia branco matou um cidadão negro. Não deixa de ser verdade que algumas comunidades negras nos E.U.A vivem com medos porque se sentem vulneráveis perante aqueles que deveriam protegê-las.
Não há dúvida que o fenómeno da globalização quebrou os limites das distâncias geográficas, aproximando-nos dos problemas e das realidades que existem de forma estrutural em alguns países, mas que não são coincidentes com a realidade que se vive, por exemplo, em Portugal.
No mundo global em que vivemos há o perigo de problemas, como o que testemunhámos nos E.U.A, serem importados com efeitos imprevisíveis, sendo este crime, cometido pelo policial Dereck Chauvin e os seus cúmplices, transformado num comportamento típico dos Agentes das Autoridades Americanas, exaltando a indignação por um crime, punível por lei, num problema racial, abrindo trincheiras numa luta entre a autoridade e a população Afrodescendente.
O nome de uma organização Internacional, ”BlackLives Matter” (As Vidas Negras Importam), foi assumido como slogan em várias manifestações, transformando a indignação que nos deveria unir contra qualquer violência exercida contra a vida humana, numa questão ideológica em que a mensagem está centrada na mensagem de que a “Vida de um Negro” é menos importante que outra vida humana ou que tem sido menos valorizada.
A “História“ da nossa civilização passou por uma sucessão de guerras, desencadeadas por motivos económicos, étnicos, territoriais e religiosos, levando a que os vencedores se impusessem aos vencidos, seja pela escravatura, seja pela subjugação cultural, e por último, na aplicação de sanções de diversas naturezas.
A nossa civilização foi evoluindo para que a seguir à guerra a paz surgisse, e com elas (nos últimos séculos) foram surgindo importantes Instituições Internacionais, precisamente para mediarem as negociações de paz, intervir para evitar novos conflitos e acima de tudo para que os Direitos fundamentais fossem respeitados.
Não podemos ignorar que em todos os países existem diversas minorias, mais sujeitas a abusos e discriminações, para as quais as forças de segurança têm um papel fundamental na proteção e na garantia da sua segurança, das suas liberdades e dos seus direitos.
Se por um lado, a morte de George Floyd demonstrou de facto uma traição à melhor tradição americana, no que diz respeito aos Direitos Fundamentais de todos os americanos, independentemente da sua origem racial, por outro, não deixa de ser uma traição à nossa tradição, quando se procura criar a ideia de que em Portugal existe um problema de racismo estruturante.
Portugal foi sempre um país de imigrantes e de emigrantes, e desde a sua fundação que nas principais cidades existiam populações minoritárias, cujos bairros recebiam a designações como as judiarias, mourarias.
Sabemos que as relações com o poder, as suas liberdades e garantias, foram mais ou menos tensas, muitas vezes violentas, dependendo essa relação de muitos fatores como por exemplo as questões económicas ou religiosas.
Não podemos ignorar o papel que o Distrito de Bragança, como lugar de destino e refúgio das comunidades sefarditas que no final do Século XV foram forçadas a deixar o Reino de Espanha; e actualmente, com o trabalho do Instituto Politécnico onde a comunidade Cabo Verdiana é a maior comunidade de estudantes estrangeiros.
Se a gravidade desta tragédia se resume à cor da pele, é preciso recuar à época dos descobrimentos, para perceber que a nossa realidade é muito diferente.
Se a gravidade desta tragédia se resume à cor da pele é necessário recuar à época da Expansão Marítima Portuguesa para perceber que a nossa realidade é muito diferente.
Com a Expansão e o Império Português considerada a 1ª globalização, os africanos com quem os Portugueses iniciaram contactos eram fundamentais para uma das principais motivações que nos levaram à expansão ultramarina, ou seja, a evangelização e a difusão da fé católica, pois consideravam-nos como gentios, ou seja, povos pagãos, seguidores da "lei natural".
Quando Diogo Cão chegou em 1492 ao Congo, iniciou de imediato importantes relações diplomáticas, reconhecendo a legitimidade do Rei do Congo.
Os primeiros contactos estabelecidos com os portugueses foram de um modo geral amistosos, o soberano congolês Nzinga-a-Nkuvu foi baptizado em 1491, na sua capital Mbanza Kongo, com o nome cristão de João, o mesmo do soberano português da altura, D. João II.
A partir de então vieram para Portugal muitos negros, sendo alguns escravos mas muitos desembarcaram como homens livres, exercendo diferentes ofícios mecânicos.
“Um médico alemão que visitou Portugal em 1494 declarou ter visto muitos mancebos negros que tinham sido, ou estavam a ser, educados em Latim e Teologia, com o objetivo de os fazer regressar à ilha de S. Tomé, ao reino do Congo ou qualquer outro lugar, como missionários, interpretes e emissários de D. João II.”(1).
A política de controle da expansão do catolicismo, levada a cabo pelos soberanos do Congo investiu na formação de um clero africano.
Mesmo após a morte de seu filho bispo, o célebre D. Henrique, o Mani Congo D. Afonso I continuou enviando a Lisboa jovens sobrinhos e primos para serem educados no Mosteiro de Santo Elói.
Na nossa história a relação com a população negra é fundamental, deve-se mencionar e lembrar, as Confrarias e as Irmandades dos “Homens Pretos”, nomeadamente a 1ª que surgiu no Convento de São Domingos, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, embora só a partir de 1565 é que os irmãos negros tiveram o seu primeiro compromisso aprovado pela autoridade régia.
Com esta Irmandade foram surgindo, a partir de 1580 outras, tais como, a de N. S. de Guadalupe, mais tarde denominada N. S. de Guadalupe e São Benedito no convento de São Francisco, e uma outra, sob a invocação de Jesus Maria José, no Convento do Carmo.
“Nos séculos XVII e XVIII, Lisboa assistiu ao nascimento de mais irmandades de negros. No início do XVII foi criada a irmandade do Rosário dos Pretos no Convento do Salvador; e a partir daí, até meados do século XVIII, os negros em Portugal instituíram mais três confrarias: a do Rosário a Resgatada, no Convento da Trindade, N. S. do Rosário dos pretos, no Convento da Graça e, finalmente uma outra confraria sob a invocação de Jesus, Maria, José, esta agora no Convento de Jesus, dos religiosos franciscanos “(2)
Ao investigar os motivos de adesão às Confrarias católicas, concluiu-se que a busca de protecção divina, o auxílio nos momentos difíceis da vida, a garantia de um funeral cristão e a multiplicação dos tempos de sociabilidade eram os grandes factores de motivação. Estas Irmandades abriam uma possibilidade de exercício de poder para os grupos sociais menos privilegiados, aumentando assim os seus níveis de protagonismo social. As Irmandades e as Confrarias dos negros foram-se multiplicando ao longo dos Séculos no nosso território continental, mas também nos nossos territórios ultramarinos exercendo para além das funções próprias espirituais e materiais espelhadas nos compromissos, um papel importante na mediação da relação do Senhor com o Escravo, assim como na ajuda financeira para o alcance da liberdade ou cartas de alforria.
O resgate de confrades, mesmo contra vontade dos senhores, foi o privilégio mais polémico alcançado pelas Confrarias negras em Portugal.
Estas Confrarias/Irmandades dos homens negros, e os santos negros das suas devoções foram sempre reconhecidas, existem inúmeros testemunhos de estrangeiros que estando em Lisboa, em dia de procissão do “Corpo de Deus” relatam a representação destas confrarias e dos seus confrades nas procissões oficiais da cidade.
Na historiografia portuguesa não podemos ignorar a violência que foi exercida, sobre as populações negras, com a prática do tráfico negreiro, atividade realizada em que os negros eram comprados nas regiões litorâneas da África para serem escravizados no continente europeu e no continente americano.
Obviamente essa migração forçada resultou na chegada de milhões de cativos africanos ao Brasil, mas precisamente por existir este abuso, o papel das Irmandades foi essencial.
Ao contrário de outras potências Imperiais, onde a frequência era menor, a verdade é que se assistiu, ao longo dos séculos a uma miscenização entre brancos e as populações negras, sendo os “Mulatos” o resultado dessa interação.
A miscigenação portuguesa foi essencial na formação da identidade e evolução das culturas brasileiras, angolanas, moçambicanas, são tomenses, guineenses, cabo-verdianas.
Em relação ao tráfico negreiro, com destino essencialmente para o Brasil foi proibido a partir de 1850, por pressão dos Ingleses, embora a pressão para esta proibição existisse desde 1831.
Mas em Portugal continental foi bem mais cedo, foi há 259 anos, em 1761 que Portugal foi pioneiro na abolição do tráfico de escravos na metrópole, declarando libertos e forros os escravos que entrassem em Portugal.
Portugal deu um primeiro passo para a abolição definitiva da escravatura.
No início do século XIX por pressão da Grã-Bretanha, Portugal proibiu o comércio de escravos, em 1854, por decreto foram libertos todos os escravos que restavam.
Em 1856 também foram libertos todos os escravos da Igreja Católica nas colónias. A 25 de Fevereiro de 1869, produziu-se finalmente a abolição "prática" e completa da escravatura em todo o Império Português.
Sabemos bem que a conquista de Direitos, impulsionados na procura de mais igualdade e mais liberdade não se consolidam por “Leis” ou “Decretos”, são necessárias décadas para a sua interiorização e a mudança de mentalidades, mas são certamente impulsionadores, não havendo dúvida que Portugal procurou acompanhar e em muitos momentos foi pioneiro.
Com a partilha de África no final do Século XIX, para manutenção dos territórios e mapeamento de territórios desconhecidos foram cometidas ações muito violentas contra as populações indígenas e autóctones. Paralelamente por parte dos Portugueses sempre existiu a preocupação de respeitar os sistemas tribais que existiam, as suas autonomias e a ancestralidade das suas tradições.
Infelizmente não se evitou durante décadas, nas províncias ultramarinas o trabalho forçado e a divisão das diferentes comunidades em cidadãos de diferentes categorias.
Foi sem dúvida, com a entrada de Portugal na O.N.U, a 14 de Dezembro de 1955, significando uma exposição internacional da sua política ultramarina, que Portugal passou a ser motivo de constante de fricção e crítica por parte da comunidade internacional.
A Carta das Nações Unidas previa a autodeterminação dos territórios administrados por potências coloniais, para além de um dos seus órgãos ser precisamente o Conselho de Direitos Humanos, com funções de promover e fiscalizar a proteção dos direitos humanos e propor tratados internacionais sobre esse tema, fiscalizar e denunciar violações.
O Professor Adriano Moreira, depois de ter representado Portugal Delegação Portuguesa na ONU (1957-1959), assumiu a pasta de Ministro do Ultramar, cargo que exerceu de 1961 a 1963,como governante, coincidindo com a eclosão da Guerra Colonial em Angola. Como Ministro estabeleceu e defendeu uma política reformista, que teve como principal marca a abolição do Estatuto do Indigenato, que impedia a quase totalidade dos habitantes das colónias de adquirir a nacionalidade portuguesa. Foi permitido a esses indígenas aceder à cidadania portuguesa e usufruírem do direito a fixarem-se e circularem em todas as parcelas do território nacional, também tiveram acesso à educação.
Levou também a cabo a adoção de um Código de Trabalho Rural, criou escolas do Magistério Primário, fundou o ensino superior nas colónias, ao fazer arrancar os Estudos Gerais Universitários, em Angola e Moçambique.
As reformas foram implementadas, não evitando uma longa e prolongada guerra colonial, mas foram essenciais para que a seguir à revolução do 25 de Abril e às declarações de independência das nossas províncias ultramarinas, já existissem quadros políticos, sendo possível a criação em 1996 da C.P.L.P, uma organização internacional formada por países lusófonos, cujo objetivo é o "aprofundamento da amizade mútua e da cooperação entre os seus membros”.
Com a revolução do 25 de Abril de 1974, elaborou-se em 1976, uma nova Constituição da República Portuguesa. Foi redigida pela Assembleia Constituinte eleita na sequência das primeiras eleições gerais livres no país em 25 de Abril de 1975 um ano após a revolução, inscrevendo no seu Artigo I: Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes.; no seu Artigo 7º: 2. Portugal preconiza a abolição de todas as formas de imperialismo, colonialismo e agressão, o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança colectiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos. 3. Portugal reconhece o direito dos povos à insurreição contra todas as formas de opressão, nomeadamente contra o colonialismo e o imperialismo, e manterá laços especiais de amizade e cooperação com os países de língua portuguesa; no seu Artigo 13º:1. Todas os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social; no seu Artigo 25º: 1. A vida humana é inviolável. 2. Em caso algum haverá pena de morte;
Em 1999, a Assembleia da República decretou, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, para valer como lei geral da República, como principal objeto o seguinte : prevenir e proibir a discriminação racial sob todas as suas formas e sancionar a prática de actos que se traduzam na violação de quaisquer direitos fundamentais, ou na recusa ou condicionamento do exercício de quaisquer direitos económicos, sociais ou culturais, por quaisquer pessoas, em razão da sua pertença a determinada raça, cor, nacionalidade ou origem étnica, e com esta Lei foi criada a CICDR (Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial), tendo a sua comissão permanente.
São absolutamente condenáveis todas as ações violentas que atentem contra a vida humana, por motivos determinados pela raça, cor ou origem ética, mas também o incitamento ao ódio, que esta questão traz quando assume realidades que não nos pertencem.
Portugal tem um passado diferenciador na nossa relação com as diferentes etnias que vive entre nós, porque somos todos Portugueses.
Somos o Portugal de Luís de Camões, do Padre António Vieira, do Marquês de Pombal que terminou com a distinção entre Cristãos Velhos e Cristãos Novos, tendo sido extinta a Santa Inquisição a 31 de Março de 1821, do Aristides de Sousa Mendes, e tantas outras grandes personalidades que contribuíram para que o nosso destino fosse ao encontro da defesa incondicional da dignidade da pessoa Humana, da sua Vida, dos seus Direitos e das suas Liberdades.
Portugal foi o 1º país da Europa que aboliu a pena de morte em 1852, certo que não para todos os crimes, confirmada a abolição total com a nossa constituição de 1976.
Defendo que todas as “Vidas Humanas Contam”, independentemente das origens étnicas e culturais, uma defesa intransigente que não deve ser ideológica.
Acredito que antes do racismo não havia a justiça, que antes do racismo não havia igualdade de oportunidades, que antes do racismo não havia a liberdade.
Em Portugal, os problemas que derivam das questões rácicas, existem mas não é sério, conotar toda uma nação, em resultado da sua História e pelos graves incidentes que têm acontecido presentemente, a uma forma de “estar” e de “agir”, contrária ao nosso percurso que aqui procuro testemunhar.
Nuno Moreira
- : BOXER,Charles. A Igreja e a expansão Ibérica, Lisboa: Edições 70, 1989.
(2) LAHON, Didier. "As irmandades de escravos e forros". In: Os Negros em Portugal. Catálogo da exposição. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos, 1999 B.