Henrique Ferreira
Tragédia, espectáculo e lucro nos incêndios de Verão
O tema dos fogos ou incêndios de matas e florestas é um dos mais maltratados pela nossa democracia, se não o mais mal tratado.
Uma das principais razões para tanto fogo e incêndio é que, a partir da criação de uma época oficial de fogos/incêndios, muito conveniente para muitos interesses económicos instalados à volta desta tragédia, tem de haver fogos para que o sistema económico-financeiro flua. Para os agentes desta economia, certamente com muitos políticos de alta responsabilidade como intervenientes, a tragédia humana e social associada ao fogo é um mal menor. O que importa é o financiamento do sistema. E esse financiamento é oficial, legal e sazonal: é a época oficial dos fogos.
Foi um autor muito conhecido, Robert King Merton, que encheu a literatura sociológica e organizacional das décadas de 40 a 60 do Século XX, na sua crítica à burocracia, quem criou o conceito de disfunção social, não só no sentido de malfuncionamento de um órgão ou de um sistema mas também no sentido de desvio dos objectivos intencionados para esses órgão e sistema.
O conceito tornou-se num dos adquiridos da ciência sociológica e explica por que é que um sistema ou uma organização têm, oficialmente, determinados objectivos mas desenvolvem outros, de orientação diferente e, mesmo contrária. Concretizando, o conceito explica por que, muitas vezes, as polícias estão ao serviço dos polícias e não dos cidadãos, o sistema de saúde ao serviço dos médicos e enfermeiros e não dos doentes, a justiça ao serviço dos juízes e oficiais e não dos cidadãos, a educação ao serviço dos professores e não dos alunos, os fogos ao serviço das empresas e organizações que o apagam.
Nunca nenhum governo atacou a sério o problema dos fogos, tendo-o, até, alguns governos fomentado: quem não se lembra das «guerras entre caçadores do regime livre e do regime associativo ou do condicionamento, quando não proibição, da pastorícia nos baldios?
E todos sabemos que o Estado, através dos sucessivos governos, foi o pior exemplo na limpeza de matos e florestas para a poder exigir a particulares. Muito menos propor as terras abandonadas à gestão das autarquias como agora a Ministra do Interior, Constança Urbana de Sousa, hipotetizou.
Certo é que tem de ser feita alguma coisa que seja muita. Provavelmente, nenhuma solução terá o acordo de todos ou, sequer, da maioria, porque nem sequer se conseguirá legislar contra os interesses instalados à sombra da floresta, sejam os funcionais, como apagar os fogos, sejam os derivados da exploração da floresta.
Na nossa democracia, a naturalização dos fogos, no sentido da sua banalização e sazonalização deixou-me incrédulo. Interroguei 20 pessoas, entre os 20 e os quarenta anos de idade. Dezoito disseram-me que achavam normal que houvesse fogos porque estes são oficiais e fazem parte dos espectáculos de Verão e do negócio das televisões.
Robert Merton tinha (e tem, apesar de morto) carradas de razão.