Chrys Chrystello
Um Arquipélago Prenhe De Vozes (Parte 1)
Um Arquipélago Prenhe De Vozes (PARTE 1).
Uma viagem pessoal à escrita açoriana numa inglória tentativa de resumir os dois volumes de ChrónicAçores que aqui deveriam ser apresentados e que a pandemia atrasou.
A ilha para Natália Correia é Mãe-Ilha, para Cristóvão de Aguiar MarIlha, para Daniel de Sá Ilha-Mãe, para mim é Ilha-Filha. Para amar, ver medrar nas dores da adolescência que são sempre partos difíceis. Toda a vida fui ilhéu, perdi sotaques mas não malbaratei as ilhas-filhas. Trago-as a reboque, colar multifacetado de mundos e culturas distantes. Primeiro nas raízes de Bragança, ilhoa esquecida do nordeste transmontano, ilhota esquecida da Europa no Estado Novo, seguido de um capítulo naufragado da História Trágico-marítima, em Timor, Bali e na ínsula de Macau, fechada da China nas Portas do Cerco, antes de arribar à vasta ilha-continente da Austrália, e por fim nestas nove filhas de Zeus. Não trago a reboque este arquipélago, mas deixar a ilha é sempre uma partida sem regresso marcado, como quem faz um luto indesejado ao correr dos dias. Para sentir melhor estas ilhas, terei de inventar como sair delas mais vezes, sem nunca as deixar para trás, e retornar de amor acrescido. Não levo comigo a dor nem a lágrima furtiva, apenas acalento o perene desejo de regresso numa noite de luar e se houver estrelas quero que sejam as minhas, gargantilha de pérolas para afagar pescoços arquipelágicos.
Podem os Açores não ser o remanescente da mítica Atlântida e geógrafos e historiadores viram na narrativa do filósofo grego alusão a um antigo conhecimento da América. O facto não é tão extraordinário como pode parecer, dado o arrojo marinheiro dos fenícios, e recentes travessias do Atlântico por navegadores solitários em frágeis embarcações. As viagens de Fenícios e Cartagineses tiveram grande importância, e poderiam ter levado a um reconhecimento dos Açores, como a circum-navegação do continente africano, a mando do faraó Necho no séc. VII a.C. e a viagem do cartaginês Annone, que no séc. V a.C., abriu as velas de Cartago rumo ao Atlântico, ultrapassou as Colunas de Hércules em Gibraltar e chegou ao Golfo da Guiné. É curioso que as referências ao conhecimento dos Açores, anteriores à chegada dos Portugueses, sejam fenícias e relativas à Ilha do Corvo.
A inquietude persegue-me desde que deixei a Europa em 1973 e me abri ao conhecimento universal e multicultural pelas quatro partidas do mundo, da ponta mais oriental do Império em Timor à mais ocidental, nestes cumes atlânticos no Grande Mar Oceano que se confunde com o anilado ou acendrado céu, dependendo da cor das lentes com que se acorda. A minha janela desabrocha sobre o mundo. Enxergo mares. Lobrigo montes. Diviso nevoeiros que desaparecem sem rasto. Fantasio que a verdadeira autonomia se abaterá sobre o arquipélago. Aí se vislumbrará a tal ínsula nova que desponta com os nevoeiros de São João. Com ela devaneio. Se a antecipo encoberta componho os óculos, arregalo a íris, foco o invisível. As ondas e as nuvens também conluiam para a ocultarem. Careço de um cartógrafo como Ptolomeu e de portulanos da Escola de Maiorca, para a mapear corretamente pois só descortino os contornos como se a visse em Braille e não em representação de Mercator como Ortelius fez. Ia jurar tê-la observado por entre um belo arco-íris da Lomba da Maia à semiencoberta Bretanha, mas o arco da velha sumiu. Quiçá tê-la-ei antevisto, mas também há quem jure ter visto D. Sebastião nas brumas! virá ao meu encontro, como a ilha Sabrina e as que surgiam e desapareciam das cartas de marear. Sempre perscruto o futuro em busca dela na realidade que me escapa. Quando a vir, reivindicarei o direito a denominação patenteada. Designá-la-ei Autonomia.
Nesta paz bucólica os vaqueiros prosseguem no afã ancestral, levantam-se trevas cerradas e acamam-se, cansados, no negrume da noite. Rotinas entrecortadas por festas, romagens, procissões, sem queixumes pela sorte caipora que lhes repete destinos ingratos. A energia positiva dos vaqueiros é dirigida para ações cotejadas com o culto cristão eivado de paganismos, como as romarias. Há alternativas, emigrar e mandar a escravidão às urtigas. Resignação amargurada, lobrigada nas comissuras de peles sequiosas, tragando um copo de três ou um abafado. Os campos continuam a ser arados, as vacas mungidas, chova ou faça sol, feriado ou dia santo de obrigação. A terra e as vacas são os atributos mensuráveis da riqueza. As ilhas transfiguraram-se em vacaria ou imensa leitaria. Cuidar de vacas doutrem a troco dum soldo miserável, sem direito a férias, doenças, feriados é servidão. A gleba cumpre horários sem calendário, a não ser dias santos e festas, religiosamente acatados por homens e mulheres. Apesar de poucas, também por aí andam algumas nas vacas e supõe-se que interrompam as lides aquando da gravidez, ao contrário dos chineses onde até as crianças nascem nos arrozais em plena colheita.
Os rendimentos são inferiores aos ibéricos mas há sempre subsídios para rações, para produção de mais leite e sabe-se lá que mais que os de cá forçaram com a sua insistência inesgotável, e as queixas diárias de que vão todos falir…. Depois do fim da gesta heroica dos baleeiros, que Dias de Melo retratou, aproxima-se o fim da era do leite que nenhum escritor romantizará. Este açoriano, é diferente do antepassado que, no séc. XIX, com menos estudos nem universidade, criou a Sociedade da Agricultura Micaelense, quiçá o movimento mais importante da história. O que os antepassados anteviram foi que a riqueza não seria duradoura devido aos avanços da produção e do transporte na Europa. Agora, todos avisaram que as vacas iriam acabar como o ciclo do pastel ou como os datilógrafos e os amola-tesouras e navalhas, mas são a única ocupação que conhecem e nem concebem outra. Há anos que se sabia do fim das quotas mas em vez de conversão, aumentou-se a produção anual de leite. Claro que os pastos não se podem converter enquanto o Diabo esfrega um olho, e os trezentos mil animais não se desvanecem num ápice por mais subsídios ao abate que se inventem, sem que haja do Governo, das autarquias ou das gentes da pecuária, qualquer ação que acautele o futuro de pobreza que advirá.
Nas zonas rurais os filhos, que já não abundam como dantes, vão à escola nos intervalos da labuta nos campos. Se faltam e não fazem os trabalhos de casa é porque foram às vacas. Se deixam de estudar é para irem para as vacas. O fatalismo insular pode ser explicado pela brutal aspereza do fogo e manifestações telúricas. Observam o destino sem sombra de desfortuna, nunca se interrogam, apenas o cumprem. Sempre foi assim, o açoriano vive do imediatismo. O futuro nunca se pensa nem planeia, e o presente é como a navegação de cabotagem, com terra à vista. O que se vê, todos os dias no telejornal é o dono das vacas a pedir apoios, porque choveu, porque está uma seca e não choveu, porque o furacão estragou isto, a tempestade tropical estragou aquilo, eu sei lá, 1001 pedinchices, às vezes, ameaçadoras na chantagem dos votos. Não penaliza os que produzem a mais, pede mais subsídios. Os tempos mudaram, mas, impérvio, permanece, encravou na gravação. Creio que a única coisa para que não pediu dinheiro foi para compensar o nevoeiro cerrado, mas, cuidado que posso estar a dar-lhe ideias.