Fernando Campos Gouveia
Um governo entre a bigorna e o martelo
A sociedade portuguesa agita-se. A crise aprofundou as desigualdades sociais e esfarrapou uma vasta classe média, empurrando-a para os limiares da pobreza que, embora afectando já antes largas camadas suburbanas e muita população do interior, passava quase despercebida, ignorada do poder e dos meios de comunicação social. Porém, de degrau em degrau, a austeridade foi ultrapassando os limites de resistência, deixando à mostra as chagas tradicionais do país e mergulhando no desespero funcionários, pensionistas, titulares de salários baixos e desempregados.
O discurso do governo, seguindo uma estratégia ideológica neoliberal, confortado pelas instituições financeiras internacionais que, na realidade, determinam a sua política, tem dado prioridade a um mirífico regresso aos mercados em 2014, como se o regresso aos mercados fosse um desígnio nacional em si mesmo. Composto de gente ambiciosa, mas politicamente inculta, confortado pelas palmadinhas nas costas de quem o empurra para uma agenda de destruição do Estado social, surdo aos clamores da rua e às decisões da justiça constitucional, este governo conduziu-nos a uma situação em que começam a colocar-se seriamente em causa os fundamentos do Estado de direito e a paz social. Esta semana foi pródiga em sinais que o governo deveria interpretar e deles tirar consequências.
Por um lado, um grupo bastante representativo de cidadãos, reunidos em defesa da democracia e da cidadania, dentre os quais se destaca o mais carismático dos anteriores presidentes da República, lançou o grito de alerta e apontou os responsáveis, a saber, o presidente da República e o governo, aos quais sugere a demissão. Por muito que o governo, através de diferentes vozes, tente contrariar a força dos argumentos invocados, ou o Presidente da República se esquive, em nome do respeito institucional, a comentar as posições duras de Mário Soares, não restam grandes dúvidas de que entrámos numa nova fase de relações entre o poder e os cidadãos, colocando-se, a partir de agora, claramente em questão a legitimidade que o governo obteve nas urnas mas foi desbaratando a golpes de ilegalidades, insensibilidade social e atentados à lei máxima que nos governa.
Por outro lado, a manifestação das forças de segurança em face do Parlamento, deixando perceber que quem deve manter a ordem não se encontra em condições morais de a manter, por duvidar da legitimidade de quem manda e aderir à razão de quem protesta, vem demonstrar que o poder tem pés de barro e pode cair, mesmo contando com a maioria no Parlamento e com o apoio de um Presidente que lhe tem aplanado o caminho.
Desenham-se agora claramente os dois campos que emergem da fractura do país: de um lado, o governo, o Presidente da República e um bom lote do que chamaria os economistas neoliberais, agarrados à cartilha da chamada terapia de choque, sem quaisquer considerações sociais ou éticas, invocam o sacrossanto respeito dos mercados e dos credores, usando, por vezes, uma linguagem provocatória, como foram os casos do presidente do BPI, dum comentador assíduo da RTP, Camilo Lourenço ou, mais recentemente, de João César das Neves. Do outro, emerge um vasto leque de opinião que vai da esquerda ao centro e até a personalidades da direita, passando por representantes da Igreja Católica e responsáveis de instituições sociais, englobando políticos, movimentos sociais, sindicatos, universidades, que sentem e interpretam o sentir da rua, o crescer do desespero e o transbordar da revolta. São duas visões distintas e caracterizadas. À pressa do governo em desmantelar o Estado Social e instituir um novo padrão de relações de trabalho e produção - objectivo que parece ser a única ideia que guia a sua acção, já que não se viu até agora o desenho de Estado que pretende implantar - responde uma resistência formada pelo desespero popular e pela consciência cívica de intelectuais e cidadãos mais formados, em defesa do modelo constitucional e da ordem social nele consagrada.
A violência, lembrada nos discursos de aviso ou vislumbrada no gesto simbólico das forças de segurança subindo a escadaria do Parlamento, não é uma hipótese académica. Ninguém, em princípio, a deseja, mas há situações em que ela emerge a partir de uma provocação. O problema é que a violência no exercício do poder pode dar o pretexto para outros tipos de violência. O governo tem violado quase sistematicamente preceitos ou princípios constitucionais que protegem direitos dos cidadãos. Como já escrevemos em crónica anterior, há neste governo uma espécie de rebeldia em relação à ordem constitucional estabelecida. Bem se entende que ela entrava a acção desejada pelo governo em vários domínios, e os tecnocratas internos e externos não se cansam de o proclamar e de pressionar o Tribunal Constitucional. Mas esta é precisamente a função das constituições: servem de amparo aos cidadãos contra os excessos do poder.
O governo encontra-se, assim, apertado entre duas forças de sinal contrário: a pressão dos mercados e dos credores, neste caso representados pela troyca que dirige o governo, e a pressão do povo, que entende estarem a ser violados para além do admissível os seus direitos fundamentais. Está, por isso, entre a bigorna da resistência popular e o martelo dos credores.
Ora, a legitimidade do governo não vem dos credores, mas da vontade popular. Só a expressão desta vontade pode clarificar as razões da política. Traída que foi manifestamente a confiança, resta, pois, a consulta ao povo.
O Presidente da República, que tem manifestado frequentemente o temor dos mercados e propugnado a obediência cega às suas exigências, não se encontra em melhor posição. A remessa da lei de convergência e corte de pensões para fiscalização preventiva pode muito bem determinar a inviabilidade do orçamento apresentado pelo governo e o não cumprimento das metas acordadas com a troyca. Se isso acontecer, já será muito difícil ao Presidente continuar a apoiar novas medidas de austeridade, que fazem correr o risco de ruptura da paz social. Não terá então outra solução que a de dar a palavra aos cidadãos.