Manuel Igreja

Manuel Igreja

Um Português Resgatou a Canção

Não há ninguém como nós. A sério. Venha quem vier. Quando arregaçámos as mangas, ninguém nos para. Se nos dá para queremos a independência, desatamos à espadeirada e corremos com os mouros e com os espanhóis. Se nos vira para descobrir mundos novos, vamos velas ao vento por aí afora e nem o mostrengo nos detém.

Isto em tempos mais antigos, que agora, bem que podemos também falar de outros feitos merecedores de trovas e trovadores. Por exemplo, se nos dá para receber o Papa Francisco por um dia que seja recebemo-lo de tal modo que até ele que já viu muito se espanta com a emoção que extravasa. Se nos dá para festejar o campeonato da bola ganho por uns moços quase todos de fora, enchemos ruas e mais ruas, praças e avenidas a apitar e a beber para celebrar essencialmente a derrota dos outros.

Mas onde eu quero mesmo ir com esta lengalenga é a outra coisa que muito me envaideceu e contentou por todas as razões e mais alguma. Ao fim de quarenta e nove participações, Portugal ganhou o Festival Eurovisão da Canção. Andamos para ali todos os anos a bater em ferro frio, mas finalmente a malha bateu e torceu para o nosso lado direito que dizem ser o que mais Deus Nosso Senhor mais gosta.

Na minha modesta opinião ganhamos bem. Gosto da canção, à semelhança de milhões e milhões de pessoas. Por isso ganhou e isso foi bom e importante. Ainda no meu modo de ver, digno de realce, muito mais que Salvador Sobral ter ganho ou não, foi a forma e o conteúdo da sua prestação, mas acima de tudo, a pedrada no charco que foi a sua vitória feita com o devido respeito, também minha e sua que isto lê.

Nem é somente por como ele sermos portugueses com alma lusa da cabeça aos pés, pois igual nacionalidade não obriga necessariamente apoio. O mais importante deste sucesso, foi ele ter batido os concorrentes aos pontos através de duas das mais importantes armas: A qualidade e a simplicidade. Foram ambas que num ápice fizeram deste acontecimento algo grandioso e absolutamente capaz de por qualquer um com uma lágrima rebelde no canto do olho.

Num espetáculo finalizador de um conjunto de outros sem igual na vacuidade e no mau gosto, de falsas alegrias e torpes bonitezas, o nosso representante prenhe de alma lusa, fez num desprendido gesto, uma ponte universal entre todas as almas que ouviram, estão a ouvir ou verão a sua canção. Simplesmente e com desprendimento fez arte, coisa que é exclusiva da humanidade. Na forma como agarrou na canção e no-la deu, resgatou a própria poesia quando esta se enreda com os acordes musicais devolvendo-lhe ou reforçando-lhe pelo menos o seu papel aglutinador de sentimentos que se transmitem e se querem transmitir. Foi de mais, uma pessoa até sentiu e sente um arrepio na espinha.

Posso até estar enganado pois o mundo anda sem grande tino e com escasso nexo, mas o cantor pode ter feito história, Não só porque foi o primeiro português a ficar em primeiro lugar no Festival da Eurovisão, que saibam os mais novos, em tempos não muito distantes quase fazia parar o país. Havia poucas coisas, e entre elas havia esta, como tudo, com defeitos com virtudes. Aliás, não andará longe da verdade quem dizer que chegou a haver qualidade relevante em muitas canções. Depois é que se estragou e ficou assim a modos que uma coisa fátua muito própria para foguetório pífio, para muitas luzes e para alguns rapazes e algumas raparigas andaram aos pulos, sem que se perceba por vezes quem são uns e outros.

Tenho para mim, que pode ter feito história também porque a sua vitória pode provocar uma viragem nos pontos de vista e nas estratégias de quem organiza e de quem concorre a eventos deste género, pois provou que as canções obrigatoriamente devem ser algo mais que expressões primárias de diarreias mentais provocadas por compreensões lentas e estupidezes aceleradas. Aquele moço com idade para ser meu filho, cantou em português, língua difícil de traduzir, e espantou, encantou e desinquietou. Centenas de milhar de pessoas não sabiam à letra o que disse, mas perceberam e foram contagiadas pelo vírus da emoção, e choram e cantaram também. Foi bonito de se ver pá.

Não sei, mas cá para mim, só um português é capaz de tal feito. Sei que não estou a ser isento, mas pronto. Deixem lá. Somos assim. Num momento estamos com a autoestima de rastos, mas num repetente ela vai-nos aos píncaros. Seja como for, o certo é que o dia treze de maio de dois mil e dezassete mais pareceu um dia com muitos dias, tão intenso e variado ele foi. Correu bem graças ao nosso valor. Eu olho no mapa e não vejo país nem gente assim. Portugal é ímpar. Por vezes está muito mal frequentado, mas isso é letra para outra canção.


Partilhar:

+ Crónicas