Manuel Igreja

Manuel Igreja

Um Ver a Partir do Futuro

Naquele tempo, metade da humanidade tinha para si que já havia atingindo o pico e vislumbrava o cume em cada esquina. Com a sua inteligência conseguia coisas de espantar, todos os dias surgiam assombros e facilidades, num quotidiano quase sem barreiras físicas e morais.

Cada qual queria um sol só para si e ficava com a telha sempre que era contrariado. Parecia não saber que viver é estar-se em desequilíbrio procurando o equilibro em cada instante. Os dias eram passados sob a ditadura da felicidade e do consumo.

Andava-se, saltitava-se, cirandava-se, comia-se, bebia-se e poluía-se o planeta que adoentou. Algumas instituições e algumas pessoas falavam, gritavam, alertavam, mas os que contavam e podiam, não ligavam porque não interessava. Nada faziam para parar.

O limite era o céu para onde se olhava e se reservava uma branca nuvem para usos exclusivo. Procurava-se o brilho não se ligando ao sarilho que se causava, num brilhar sempre mais parecido que efetivamente tido. Era efémero, etéreo e erróneo nascia das imagens difusas e de contornos provocadas pelo egoísmo diante dos espelhos de cristal.

No entre isso, a outra parte da humanidade vivia esquecida, humilhada e ofendida, pobre e escondida. Uma boa parte dela, aos milhões, deitou pé ao caminho fugindo da guerra, da morte e da miséria, mas não alcançava o sonho porque lho impedia a indiferença, a maldade e o desinteresse dos que podiam ajudar, mas não ajudavam porque não queriam.

Mas a páginas tantas num daqueles dias que nunca deviam nascer, o mundo gostoso, mas desarmonioso de uma das metades, foi sacudido. Foi varrido por um mal provocado por um ser minúsculo, do tamanho da migalha de uma migalha de milhões de migalhas.

Não se via, estava em toda a parte e por isso não estava em parte alguma, pois só se sabia que existia e se espalhava matando. Dizimava a eito, sem olhar a quem. Podia entrar em todas as portas em cada corpo sem pedir licença e sem medir ocasião. Sorrateiro, escondia-se e aterrorizava.

Era março, abril e depois maio, mas a primavera não sabia. Esquecida, deixou que se prolongasse o inverno de todos os descontentamentos. Desapareceram as estradas suaves para o futuro que deixou de ser o que era. Grassaram os temores, alteram-se os humores. Passou a viver-se com a certeza de que não havia certeza alguma.

A realidade alterou-se, a humanidade espantou-se e relembrou-se da sua simples condição de pequena mortal. Temeu ser filha de um deus menor, porque se viu andar por entre Deus que lhe pareceu ausente. Mas reagiu e acudiu. Socorreu-se e foi socorrida. Sofrida melhorou a sua condição e deixou vir ao de cima os mandos do coração.

Aproveitou o potencial das avançadas tecnologias que lhe permitiam então estar em toda parte sem estar em parte alguma. Deixou de estar onde não estava, estancou, sedentarizou-se até onde pode, e pode muito. Cada pessoa olhou em seu redor e notou que havia alguém a quem se dedicar nem que fosse por breves minutos.

Regressou o desejar-se um bom dia mesmo que fosse noite, porque bem lá no fundo cada um queria que na vida houvesse sempre luz. O essencial arredou o básico nas prioridades. Agarraram-se as oportunidades, valerem mais as verdades.

Agora neste tempo, só resta continuar. Mas no palco da vida que é uma peça representada por loucos, o diluir dos erros na memória fará com que voltem os enganos. Regrediremos não sabendo que no representar-se a vida, frequentemente cai o pano sem que se ouçam os aplausos.

Algures onde se quiser, ano de 2050.


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