Manuel Igreja

Manuel Igreja

Uma cigarrilha para o Inácio

Alguns dos que conhecem o contexto deste escrito poderão até achar estranho que a sua principal figura mereça semelhante referência, mas pronto quanto a mim merece pelo que, eis-me aqui neste labor de vos falar de uma certa pessoa que feneceu muito recentemente e era do meu mundo.  

O Inácio morreu apesar de se poder ter como ainda novo. Andava pela meia idade com os cinquenta acabados de fazer há um par de anos. Mas já se adivinhava o desfecho. Não é que sofresse de doença assim daquelas que nos levam a dizer que o fulano de tal está mal e se pode apagar a todo o instante. Nem sequer exercia profissão de risco. Também não senhor.

Mas arriscava. E muito. Bebia até não poder mais, e só não podia em momentos de dormir que por pouco que seja um homem sempre precisa e quando não arranjava copo à mão de semear para escorropichar até à última gota que o líquido quem sabe se por ser sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo não se pode desperdiçar. Pensaria ele.

Por diversas vezes e a páginas tantas dava consigo no hospital levado de urgência após queda por desnorte ou por reação do organismo a tanto sumo de uva fermentado. Dava-se segundo ele, a coincidência de ser o último copo lambido que lhe fazia mal. Pior ainda, era quando estando a tinto, lhe dava para virar para o branco. Estragava tudo.

De cada vez foi veementemente avisado para deixar de beber, mas não conseguia resistir. O vício estava-lhe no sangue e o mafarrico não deixava de o tentar. Levou-o pela mão à morte. Mas não se ficou a rir o chifrudo que cheira a enxofre. A Igreja da aldeia terra de sua adoção, abarrotou de gente que o acompanhou na última viagem. Juro.

Não foi herói nem valente, mas foi sempre muito educado. Mesmo com a cabeça toldada pelos vapores etílicos, sempre respeitou tudo e todos. Por isso foi distinguido e não esteve só nos derradeiros momentos entre os vivos. Foi tocante e emocionante ver a sua companheira, a Catana, rapariga da minha criação, a sofrer que nem uma Madalena porque se lhe ia embora o Inácio.

Do mais humildade e básico quer um quer outro, não havia minuto sem mau modo mutuamente trocado, mas provou-se ali mesmo que o bom sentimento nascido no convívio germina sempre por piores que sejam as condições e por mais contrárias que sejam ou pareçam ser as atitudes.

Ao longo dos anos pela circunstância de ser vizinho da minha família, privei de perto com o Inácio e com a Catana, esta, desde que me conheço. Por isso lhes dedico muito carinho. Mal persentia a minha presença por casa, o Inácio chegava-se. Habituei-o a dar-lhe uma cigarrilha, logo eu que nem fumo por vício. Sabia que ele gostava, e tinha todo o gosto em lhe ofertar uma que ele não fumava logo. Guardava-a para mais tarde quando lhe apetecesse, dizia ele com ar entendedor.       

Fiz questão e senti obrigação se estar presente no seu funeral, e posso dizer que desde há muitos anos assisti compenetradamente à missa desde o “Levantemo-nos Irmãos” até ao “Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe” dito pelo padre.

Acolhido na igreja da minha aldeia senti-me em casa deslumbrado pela linda talha do altar-mor e pelos retratos pintados no teto e emoldurados pelos contornos da minha alma. Recuei ao tempo da minha meninice durante a cerimónia e isso devo-o ao Inácio.

Por isso, olhem: vou findar, e vou fumar uma cigarrilha em sua memória esperando que o fumo e o cheiro cheguem até ele lá em cima depois do céu azul.         

                  


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