Manuel Igreja
Uma lágrima
A menina agora uma mulher feita, está há longos anos aos cuidados de uma instituição de solidariedade social por causa das desvalias familiares que lhe fizeram tortuosos os já percorridos caminhos da vida. É mais uma entre muitas outras que sem culpa, penam meramente porque as circunstâncias lhe foram megeras.
Contudo, agora que se fez adulta, reclama o seu direito de poder vir a ser uma senhora, como qualquer outra para quem o viver tenha sido ou seja menos injusto. Aprendeu a ocupar o seu lugar, ganhou valor e encarreirou não largando quase nunca os comandos do seu destino.
Estudou. Na instituição de acolhimento, ela e mais outra palmilharam caminhos, escorraçaram preconceitos, olharam o horizonte muito para lá de até onde a vista alcança. Conquistaram o direito de entrar na Universidade por mérito próprio. Andam em busca de um sonho, ao jeito de quem é jovem e sente que o mundo não tem limites.
Um dia, a meio de Dezembro, como costume, levou-se a efeito a Ceia de Natal, no pequeno universo do Lar em que se lhe lançaram as amarras na sua vida feita de tempestades. A menina sabe que foi ali que encontrou o seu porto de abrigo, o chão firme em que aprendeu a tornar os ventos da navegação minimamente favoráveis.
Quis e fez questão de o afirmar para que todos ouvissem. A uns para ficassem a saber que a gratidão medra quando a semente encontra solo e cuidados a jeito, a outros, às meninas mais novas suas companheiras nos modos de vida sofridos com permanências de ausências sentidas, para que tomassem nota de que o desfado também se consegue contrariar.
Falou. Trouxe à tona e mostrou a sua alma que outrora foi caiada de negro, mas que se foi branqueando à medida que a esperança lhe foi sendo permitida. A sociedade deu-lhe a decência roubada nas encruzilhadas por onde nunca escolheu passar. Agarrou-a e não mais a largou. Conquistou-a e não mais a largou. Sabe que tem esse direito e garantiu que a amiga e companheira estudante igualmente assim considera.
Em público escancarou o âmago de uma e de outra. Usou algumas simples palavras, mas quem o disse foram os seus olhos humedecidos que mais pareceram um profundo lago de águas revoltas em que se formou uma onda. Teimosa, uma lágrima foi ganhando forma. Redonda, cresceu e rolou pelo seu rosto espelho de um interior remexido mas muito fortalecido.
A menina hoje uma mulher feita que quer ser uma dama prometeu não desistir na sua conquista e vai conseguir. Dizem que tem ajudas de muita conta. Tomem nota que há quem diga que enquanto se ela expressava, o Menino Jesus no presépio cochichou muito com Sua Mãe ali ao lodo, assim a modos de quem estava a combinar coisas a fazer por aquela rapariga.
Eu não vi, mas a ser verdade, o mais certo é o combinado vir a ser para todas, pois lá em cima, não se cortam as unhas rentes quando os merecimentos existem.