Chrys Chrystello
Uma Páscoa diferente e as páscoas da minha memória
Crónica 331 uma Páscoa diferente e as páscoas da minha memória
DEVE SER DIA FERIADO HOJE, na minha rua da Igreja, na Lomba da Maia... mais de 50 viaturas passaram em meia hora...confinamento? nã...é sexta feira santa.. e não param...onde será a festa? ao meio dia parou tudo, está na hora da janta...quando recomeçar eu aviso. Mas aviso quem? A PSP está toda nas barreiras e cordões sanitários…
Claro que este ano a Páscoa tem formato diferente dado estarmos obrigados ao confinamento mandatório sem trânsito interconcelhio, pelo que revistarei alguns anos anteriores.
DOMINGO DE PÁSCOA, 16 abril 2006
Hoje não irei falar desta estação festiva para muitos crentes pois cada vez mais ela deixou de ser um momento de reflexão. Similarmente ao Natal converteu-se num apelo ao consumismo de chocolates e amêndoas em que ninguém se dá ao trabalho de pensar porque existem estas férias e feriados. É irónico que seja um não-crente, ateu até ao tutano, a falar disto, mas cada um é como é e não renego as minhas origens cristãs embora professe um profundo respeito por todas as outras crenças e religiões desde que não sejam fundamentalistas ou exacerbadas por ódios ancestrais.
Para mim a Páscoa é uma época de reflexão sobre o caminho terreno de cada um de nós (perdoem-me se isto começa a parecer uma homilia), sobre a inevitabilidade causal desta curta passagem, sobre a ineficácia de tentarmos deixar uma marca dessa passagem, sobre a futilidade de nos tentarmos afirmar enquanto seres vivos, sobre o materialismo exacerbado que nos preenche o quotidiano, sobre a falta de amor e caridade com que permeamos os nossos dias, sobre a incapacidade de perdoar e ser perdoado. Lá fora os vizinhos afadigam-se a colocar verdes e flores no chão na antecipação do cortejo pascal ….
Em 1497 D Manuel I assustado com a ideia de que os judeus pudessem esconder as crianças e que a sua decisão tomada em Estremoz viesse a extravasar, determinou que a ação fosse executada no domingo de Páscoa. O país viu-se palco de grandes tragédias. Filhos arrancados dos pais, arrastados com violência, tendo-se constatado inúmeras mortes e suicídios. É de se notar a desigualdade embutida nessa ação, pois os mouros, como os judeus, eram passíveis do decreto de expulsão. Não lhes tiravam, porém, os filhos. Por que razão se haveriam de poupar os mouros? A resposta a esta indagação encontra-se no comentário feito pelo cronista Damião de Goes a respeito do assunto, na sua obra Chrónica de Dom Manuel
"A causa foi porque de tomarem os filhos aos judeus, se não podia recrescer nenhum damno aos christãos, que andam espalhados pelo mundo, no qual os judeus por seus peccados não tem reinos, nem senhorios, cidades nem villas, mas antes em toda a parte onde vivem são peregrinos e tributários, sem terem poder nem authoridade para executar suas vontades contra as injurias e mal que lhes fazem. Mas aos mouros por nossos peccados e castigo permitte Deus terem occupada a mór parte da Asia e Africa e boa da Europa, onde tem impérios e reinos e grandes senhorios, nos quaes vivem muitos christãos debaixo de seus tributos, além dos que muitos tem captivos e a todos estes fora mui prejudicial tomarem-se os filhos dos mouros porque aos que se este agravo fizera, é claro que se não houveram de esquecer de pedir vingança dos christãos... e sobretudo dos portugueses."
2007. Na Páscoa, o folar e os doces caseiros fazem a delícia de todos os transmontanos…. são dias especiais que não dispensam a presença da maioria dos filhos da terra espalhados pelo país e até pelo estrangeiro.
Há muitas experiências de vida que seria útil partilhar e trazê-los de volta a um tempo em que a família era alargada, mas mesmo assim convivia nas festas de natal e Páscoa. Lembro-me da série Família Forsythe e creio que aquilo que se passou na mudança do séc. XIX para o XX está a suceder a um ritmo bem mais acelerado. Qualquer dia só nos conhecemos virtualmente através do Facebook ou qualquer outro instrumento virtual. Talvez seja melhor e assim haja menos intrigas e desavenças familiares. É mais difícil brigar com estranhos, em especial se não soubermos que são da mesma família...
2008. Não posso precisar quantas vezes estive na Eucísia (talvez todos os anos entre os 5 e os 17), mas lembro, em particular uma Páscoa, talvez as das imagens em fotos de 1959, quando se juntaram todos os tios, primos e primas, do clã Magalhães, desde Alfândega da Fé ao Azinhoso, Mogadouro, ao Sendim da Ribeira, ao Porto e a Vila Real quando a enorme sala de jantar velha (que fora o quarto do meu bisavô) era pequena para tanta gente. Estava a abarrotar e até se conseguira encher a mesa comprida de doze lugares na sala de jantar nova na parte da casa dos meus avós. Havia duas cozinhas a funcionarem. As enormes salas de jantar cheias de gente. Essa será sempre a única Páscoa da sua vida que consegue evocar. A família toda junta, coisa importante e hoje raramente vista. Essa é aliás a única Páscoa da minha vida que consigo recordar bem, apesar de ser ainda muito jovem. Todas as outras celebrações pascais se perderam na voracidade do anonimato e da rotina. Ou então condensei todas essas Páscoas numa só.
Aquela perdurou, assim como a comunhão solene de uma primita no Azinhoso, na Páscoa de 1962, onde também estiveram todos, quase enchendo todos os quartos e camas disponíveis nesse outro enorme casarão. No dia seguinte a refeição foi na pequena casa da Quinta na Eucísia cuja varanda era pequena para tanta gente.
Muitas décadas depois foi doloroso voltar a percorrer aqueles salões, os quartos pequenos nos baixos, ao lado das lojas do rés-do-chão, a enorme sala de jantar com vista para o Vale da Vilariça, o salão onde dormi pela última vez em 1988 (ou seria 1990 ou 1992?) agora que a casa estava esventrada de móveis. Os olhos humedeceram ao visitar os baixos onde dormi, em criança, nas férias da Páscoa quando os primos e os tios também lá iam. As lojas, no andar térreo, onde dantes se acumulava o azeite e seu vasilhame estavam limpas e vazias, já ninguém matava o porco, ninguém colhia o azeite. Já não havia colchas nem lençóis de linho para a procissão pascal, depois dos dias de silêncio e de dieta forçada.
Nesses dias ninguém comia carne pois era um pecado que os levava a todos para a autoestrada do inferno. Felizmente Bento XVI acabaria por decretar em 2008 que o Inferno não existe. Ufa, que alívio. Era a vingança de tantos temores infantis sempre ilustrados por imagens do catecismo que graficamente lhe haviam implantado por volta dos sete anos e que ainda hoje o arrepiavam, mesmo sem crer. Tanto remorso inútil, tanto arrependimento desnecessário por que passara, tanto sentimento de culpa supérfluo.
Por entre as grossas paredes revivi memórias agradáveis de tempos e de gentes que já não voltam mais, admirei-me com os finos tabiques que separavam os dois quartos na casa dos avós. Regressei temporariamente a um passado alegre e sem preocupações. Senti saudades. Sei bem o significado da palavra como já não o experimentava desde que cheguei a Timor, trinta e cinco anos antes. São as saudades que mantêm os sonhos vivos, dissera-me a outra avó paterna, um dia.
Há sessenta anos, ainda existia a vergonha de se dizer que se descendia dum abade, cónego ou padre, tão comum a tantas famílias da região. Uma mescla de respeito, medo e veneração ao Cristianismo, que se impusera primeiro aos mouros da rica Alfandagh, para depois ser temporariamente mesclado com judeus que fizeram desta uma zona bem rica, antes de sofrerem os efeitos da conversão forçada e a clandestinidade, quando não a morte, o exílio ou a Santa Inquisição.
Hoje, séculos depois do êxodo judaico, a região está mais pobre do que nunca, sem a riqueza assinalável que a história descrevia no tempo de romanos e de mouros. Perdiam-se também as histórias de princesas e mouras encantadas, sem avós que as contassem pois já não há netos ou netas nas terras abandonadas.
2011 Brasil Floripa
Sábado, dia 3 de abril, fomos a mais uma cidade costeira, no norte de Ilha, Santo António de Lisboa, uma das povoações mais antigas de Santa Catarina. Essa área de preservação cultural guarda a tradição da comunidade pesqueira, juntamente com casarios centenários e uma rua pavimentada com pedras brutas do tempo da escravidão. Destaque para a Igreja de Nossa Senhora das Necessidades, construída entre 1750 e 1756, considerada uma das mais charmosas da Ilha, e a bicentenária Casa Açoriana, galeria de arte e museu popular. Almoço no Restaurante Chão Batido em Santo António de Lisboa. Devo confessar que apesar de tudo não vi nestes locais todos, tantas semelhanças como as que dizem existirem com os Açores. As recordações avivadas pelas fotografias não me deixam falar da açorianidade arquitetónica ou urbanística. Ela existe como um elemento metafísico, invisível e intangível, mas sempre presente. Digamos que a açorianidade daquelas gentes e terras é mais um estado de alma. Um mês passado, recordo melhor as paisagens da costa, os mares calmos, a neblina ao amanhecer e os magníficos pôr-do-sol, do que a herança açoriana. Eles sentem-na e defendem com unhas e dentes, essa descendência de gerações. Aparte uma ou outra casa de “tipo açoriano” qualquer que seja a definição que a tal se dê, encontrei mais o sentimento de pertença aos Açores mais de duzentos anos passados do que encontro noutras partes do mundo. Este sentimento, já o disse no livro ChrónicAçores, é bem peculiar dos açorianos estejam no Canadá, Estados Unidos ou Brasil. Ali era notório como todos se queriam afirmar mais açorianos do que os açorianos. Esses locais eram paradisíacos com belas praias e uma paisagem maravilhosa em inúmeras baias povoadas de pequenas ilhas a estimularem a nossa vontade de as comprar e nelas habitar.
Nesses dias ainda nos dedicamos a sonhar deixar os Açores e ali fixar residência. Com mil euros já se vive confortavelmente, pois o custo de vida é relativamente barato, se não se andar atrás de modas e marcas. Era uma solução para a Helena se desvincular deste ensino secundário, ou o liceu como insisto teimosamente em chamar-lhe, que tanto a desgasta e tão poucas satisdações lhe trás. Anda cansada, desanimada e desiludida com a missão de ensinar que está limitadíssima, num ensino que se ocupa de tudo menos da sua função primordial que era a de formar jovens com conhecimentos.
O resto da comitiva ia chegando aos poucos e domingo de Páscoa foi a vez de chegarem o Luciano Pereira (presença habitual desde o colóquio nº 1) do nosso projeto da Diciopédia agora rebatizado de Lexicopédia pelo nosso patrono Malaca. Com eles veio o Tiago Mota do Chá da Gorreana. Nos dias seguintes chegariam o José Carlos Teixeira de Okanagan na British Colúmbia (Canadá) e o jovem escritor, descendente de açorianos da Lomba da Maia, Anthony de Sá, mais a nossa pianista residente, a Ana Paula Andrade. O Brasil, de Santa Catarina, não é só feito de praias ilusoriamente divinais, este país vive numa burocracia napoleónica como Portugal já teve. Apesar dos inúmeros progressos e competitividade em várias áreas de desenvolvimento económico, é também, e ainda, um Brasil da Polícia Militar, sempre presente - diria mesmo, omnipresente - com suspeitas de corrupção e nepotismo em cada canto. Diga-se, a propósito, que os prefeitos que visitamos sempre nos apresentaram as suas primeiras-damas como tendo cargos executivos nas prefeituras...era demasiada coincidência. Aprenderam bem a lição de Portugal, disse com os meus botões. Quem exerce o poder, a qualquer nível, fá-lo de uma forma discricionária e despótica sobre os pobres e desvalidos que se lhe têm de submeter sob risco de perderem mordomias ou meros apoios a candidaturas futuras. Uma intricada teia de interesses que o poder tece e que ameaçou, por várias vezes, implodir em pleno seio dos colóquios. Ou, como a Helena diz, este povo não só faz telenovelas, vive-as a cada minuto das suas vidas. Isto é perigoso, pois funciona no sistema teia de aranha que a todos enleia antes de os devorar na sua intrínseca fome de protagonismo e destaque. Ora eu nada disso busco, tive muitos 15 minutos de fama, como diria o Andy Warhol, mas, de todos, o mais notável fora uns dias antes na venerada Academia Brasileira de Letras. Estas guerras da manjerona deixavam-me agastado e incómodo em terras onde era considerado, e sempre seria, estrangeiro, apesar da vovó brasileira e do resto da família que ainda ali vive e se não dignou vir ver-me ou conhecer-me. O Brasil é um misto de muita pobreza generalizada e duma minoria muito rica, um conjunto de enormes conquistas tecnológicas e de atraso. Os bancos vivem nos anos 1960, a internet é lenta e cara, e os correios funcionam muito mal. Mas é um país de contrastes ainda pouco cosmopolita e demasiado coloquial.
A Páscoa era no dia seguinte e tínhamos de nos deslocar ao continente pois a Prefeitura Municipal de Palhoça ali recebia a comitiva oficial para um dia cultural com oferta de almoço. Foi o nosso primeiro encontro com índios que me haviam dito estarem a ser integrados na sociedade (?), e dos quais apenas vislumbrara uns tantos, vendendo artesanato, na manhã em que fôramos ao mercado comprar lembranças. Pois bem ali estavam por detrás das janelas espreitando, como que a medo, espantados por verem gente de outras paragens a falar um português diferente. Deram um recital de música índia, mas as caras e a linguagem corporal eram de tristeza e temor, como se ali estivessem obrigados a representar um pedaço da sua cultura, como animais em feira de novidades ou circo de anormalidades. Houve ainda um trio vocal com uma cantilena tradicional e umas jovens de cinco ou seis anos vestidas com um qualquer trajo folclórico português a dançarem uma modinha dita açoriana, além de uns tantos discursos oficiais de entidades locais. Quando chegou a minha vez, não deixei de pôr o dedo na ferida, elogiando os esforços da prefeitura e das entidades locais, de trazerem os índios ao seio da comunidade, preservando e respeitando a sua cultura e tradições, pois tal como eu aprendera na Austrália com os aborígenes, eles eram os originais habitantes e deveríamos respeitar a ligação secular que tinham com a terra de seus antepassados.
Jamais esquecerei a jovem que nunca ergueu os olhos do chão nem olvido as expressões taciturnas dos restantes adolescentes de ambos os sexos. Apetecia ficar ali e lutar pela preservação da herança índia, mas como chefe daquela embaixada cultural açoriana nada mais podia fazer. Depois da troca de galhardetes e de ofertas visitamos a igreja local e fomos almoçar. Outra cena me espantou, pois surgiu em pleno almoço, um padre a celebrar um qualquer rito pascal, de mãos dadas e cânticos religiosos, sem alguém cuidar de saber se a companheira Edma (de Moçambique) era islâmica, ou se havia não-cristãos naquela vasta comitiva. Monoteísmo oficial? O Prefeito de Palhoça precisa de lições de multiculturalismo em alta dose. Aparte isso, havia uma vontade enorme de celebrarem protocolos com os visitantes e de criarem mais laços e entidades para perpetuarem a memória dos primeiros colonos açorianos.
A imagem da índia cabisbaixa perseguiu-me até hoje, sei que continuavam a viver à moda deles nos montes e raramente descem ao povoado. Havia naqueles olhares desconfianças seculares por promessas incumpridas, suspeito.
Ao fim da tarde teríamos, no próprio Hotel, uma receção oferecida pelo Prefeito da cidade de Governador Celso Ramos, que homenageava a comitiva com um documentário intitulado «Ganchos entre mares e montanhas». Na impossibilidade de irmos a todos os municípios que queriam receber a comitiva oficial, decidira aquele Prefeito ir visitar-nos, falar e mostrar em vídeo o seu município. Ia acompanhado da sua secretária dos assuntos culturais, curiosamente a primeira-dama, e queria igualmente celebrar parcerias com os presentes. Esta era a tónica de todos os encontros oficiais ali realizados até ao momento.
Havia ansiedade daquelas gentes e daqueles municípios em mostrarem que eram mais açorianos que o município vizinho...na manhã seguinte, a comitiva deslocou-se para uma visita com Sessão de esclarecimento na UFSC perante uma centena de alunos e professores (uma aluna dormiu descaradamente durante os 75 minutos da sessão). Por fim, impunha-se uma visita ao NEA (núcleo de estudos açorianos, dirigido por Joi Cletison), a entidade que há mais de 25 anos apoia a reconstrução histórica da memória açoriana em todos os pontos do Estado. Um trabalho dedicado com menos folclore e mais substância científica, pareceu-nos.
2010 Regresso na memória a Bragança…Evoco com saudades o tempo em que a avó materna, as tias-avós e primas faziam a matança do porco e em outubro enviavam as primeiras alheiras; na Páscoa, os folares e bolas de carne; e no verão, a compota de ginjinha. Seguiram-me para todos os países menos para a Austrália que ali não podia entrar comida estrangeira. Comera alheiras e ginjinha feitas pela minha família em Timor, em Macau e noutros locais. Ainda sentia no palato o seu sabor distinto, sempre me acompanhara como um cordão umbilical. Há paladares que são como os odores, nunca se apagam do subconsciente.