Henrique Ferreira

Henrique Ferreira

Uma prova não provada

A prova de acesso à profissão docente que o Ministro da Educação e Ciência quer administrar, pela primeira vez, aos candidatos a professores dos vários níveis de ensino não superior está a provocar uma batalha jurídica e profissional. Ao fim de 23 anos, 13 decretos-lei, 4 decretos regulamentares e não sei quantos despachos, a prova de acesso à profissão docente, outrora chamada «exame de estado», parece estar num impasse embora marcada para o dia 18 de Dezembro de 2013 e 1 de Março a 9 de Abril de 2014.

Esta prova está prevista como possibilidade na verificação de competências em Língua Portuguesa, desde a aprovação da primeira versão do Estatuto da Carreira Docente (ECD) já que «Aos candidatos pode ser exigida prova do domínio perfeito da língua portuguesa, a qual é obrigatória quando não tenham nacionalidade portuguesa.» (Decreto-Lei nº 139-A/1990, nº 6 do artº 22º).

Porém, só foi tornada obrigatória, em Lei, não na prática, a partir da 8ª alteração ao ECD, operada pelo Decreto-Lei nº 15/2007, de 19/1. Nos termos desta alteração, para se poder exercer a docência, não basta ter habilitação profissional sendo também necessário «Obter aprovação em prova de avaliação de conhecimentos e competências, tratando-se de concurso para lugar de ingresso.» (nova alínea f do nº 1 do artigo 22º, em 2007).

Nos termos do nº 8 do mesmo artigo, o XVII Governo Constitucional remetia para Decreto-Regulamentar (DR) posterior a especificação do objecto, conteúdo e condições da prova de acesso, o que aconteceu pelo Decreto Regulamentar nº 3/2008, de 21/8, artigos 2 a 7. A prova teria pelo menos duas ou três componentes: uma, geral, comum a todos os candidatos, sobre as funções dos professores, conhecimento da escola e do sistema educativo e perfis profissionais, sociais, culturais e éticos; e outra, específica, sobre as competências profissionais no grupo de especialidade de ensino.

Mas o XVII Governo Constitucional recuou parcialmente, logo no ano seguinte, alterando o DR 3/3008 pelo DR 27/2009, de 6/10, o qual só assumiu a prova comum como obrigatória deixando a prova específica na ambiguidade: « A prova pode ainda ter uma componente específica relativa ao nível de ensino, área disciplinar ou grupo de recrutamento dos candidatos.» (nº 3 do artº 3º).

Entretanto, pelo menos até 2013, a prova nunca foi administrada. Pelo Decreto-Lei nº 146/2013, de 22/10, é alterado pela 12ª vez o ECD e o actual Governo (o XIX Constitucional) parece determinado a levar por diante a prova, o que só conseguirá se os tribunais indeferirem as providências cautelares entretanto apresentadas pelos sindicatos.

Por este Decreto-Lei o Governo altera, mais uma vez, o artigo 22º do ECD, mantendo a ambiguidade na realização da prova específica, ambiguidade estabelecida já no DR 27/2009, de 6/10. A alínea f) do nº 1 prescreve agora que basta «Obter aprovação em prova de avaliação de conhecimentos e capacidades». E o resto do artigo estabelece mais duas alterações: 1) «A prova (…) visa verificar o domínio de conhecimentos e capacidades fundamentais para o exercício da função docente.» (nº 8 do artº 22º do ECD pelo DL 146/2013, de 22/10, alterando a redacção do nº 7 do artº 22º do DL 15/2007, de 22/1); e, 2) «A prova de avaliação de conhecimentos e capacidades tem obrigatoriamente uma componente comum a todos os candidatos, que visa avaliar a sua capacidade de mobilizar o raciocínio lógico e crítico, bem como a preparação para resolver problemas em domínios não disciplinares, podendo ainda ter uma componente específica relativa à área disciplinar ou nível de ensino dos candidatos.» (nº 9 do artº 22º na redacção do DL 146/2013, de 22/10).

Esta redacção é mantida no DR 7/2013, de 23/10, publicado no dia seguinte ao da publicação do DL 146/2013, alterando profundamente a ordem jurídica instituída pelo DR 3/2008 e alterações posteriores, republicando este DR. A ambiguidade na realização da prova específica mantém-se porque não são estabelecidas as condições em que há e em que não há lugar a esta prova mas pelo Despacho n.º 14293-A/2013 (DR II Série, 5/11/2013, p. 32768-(2), o Ministro Nuno Crato decide que, «No ano escolar 2013-2014. a prova de avaliação de conhecimentos e capacidades, adiante designada por prova, integra a componente comum e a(s) componente(s) específica(s), nos termos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 3.º do Decreto Regulamentar n.º 3/2008, de 21 de janeiro. § 2 – A componente comum da prova realiza-se no dia 18 de Dezembro de 2013. § 3 – A(s) componente(s) específica(s) da prova realiza(m)-se entre os dias 1 de março e 9 de abril de 2014, inclusive.».

Há uma alteração de fundo: a prova é universal, para todos os candidatos a professores mas esquece-se a sobredeterminação do DL 146/2013, artº 3º, alterando o Decreto-Lei n.º 132/2012, de 27 de Junho, sobre concursos: «exceto para aqueles que sejam colocados até 31/12/2013». Antes, havia dispensa das provas para os candidatos com pelo menos dois anos de serviço nos últimos cinco anos. No entanto, o legislador ainda introduziu uma moratória nos efeitos de uma eventual reprovação nas provas: «Os docentes que não obtenham aprovação na prova podem ser admitidos aos concursos de seleção e recrutamento de pessoal docente que se realizem até 31 de dezembro de 2014.» (artigo 3º do DR 7/2013).

A justificativa deste Decreto Regulamentar é nova em termos ideológicos e de regulação do sistema de formação de professores. No preâmbulo pode ler-se que «Esta prova pretende comprovar a existência de requisitos mínimos de conhecimentos e capacidades transversais à lecionação de qualquer disciplina, área disciplinar ou nível de ensino, como a leitura e a escrita, o raciocínio lógico e crítico ou a resolução de problemas em domínios não disciplinares, bem como o domínio dos conhecimentos e capacidades específicos essenciais para a docência em cada grupo de recrutamento e nível de ensino. §. A informação que se pode obter com a prova de avaliação de conhecimentos e capacidades considera-se complementar relativamente à que é possível comprovar através dos demais processos de avaliação vigentes, seja no âmbito da formação inicial, desenvolvida nas instituições de ensino superior para tal habilitadas, seja no âmbito da avaliação a realizar ou já realizada em pleno exercício de funções. §. Considera-se pertinente que a prova seja generalizada a todos os que pretendam candidatar-se ao exercício de funções docentes pois, de outra forma, devido ao redimensionamento do sistema, não seria abrangida a parte mais significativa dos candidatos com perspetivas de integração na carreira. Pretende-se valorizar a escola pública e a qualidade do ensino aí ministrado, cientes de que os conhecimentos e capacidades evidenciados pelos professores constituem uma variável decisiva na qualidade da aprendizagem dos alunos.» (§§ 3, 4 e 5 do preâmbulo ao DR 7/2013).

Parece-me emergir uma contradição importante desta regulamentação. Todos os professores com pelo menos um ano de serviço docente já foram objecto da avaliação profissional relativa ao período probatório previsto no artº 31º do ECD (em princípio, o primeiro ano de exercício profissional, a menos que o não quisessem), período e avaliação que permitem o acesso à carreira. O docente já exerceu, já foi avaliado e agora tem de sujeitar-se a uma prova para poder concorrer no futuro à função docente se não tiver sido colocado até 31 de Dezembro próximo.

Para os novos professores ou para os que nunca exerceram a profissão reconheço ao MEC o direito de regulação da entrada na profissão. Porém, tal direito colide com os princípios de autonomia das instituições de ensino superior (IES). É necessário por isso alterar a Lei 62/2007, de 10/9, e e o Decreto-Lei 43/2007, de 22/2 no que respeita à formação de professores, emprestando-lhes uma muito maior sobredeterminação nos objectivos e conteúdos da mesma formação. De facto, a formação de professores é diferente de instituição para instituição e, por isso, submeter os futuros professores, no actual estado de coisas, a uma prova de acesso, é também submeter as IES a uma prova para a qual não puderam preparar-se nem preparar os futuros professores.

Esta questão é muito importante e, em vários momentos e contextos tenho dito que a formação de professores não deve ser descentralizada como o é actualmente. Há vários países na Europa que a não descentralizam totalmente porque ela é uma questão de interesse nacional. Tem a ver com o Projeto de Sociedade e, em relação a isto, o Estado deve fazer controlo de valores, de objectivos, e de conteúdos, pelo menos em 70% do plano de formação e dos respectivos programas.
Pelo Decreto-Lei 43/2007, de 22/2, já o Governo de então havia estabelecido algumas balizas em termos de perfis profissionais dos diferentes professores. Porém, insuficientes para garantir uma boa formação em todas as IES. Neste sentido, defendo que o actual Governo deve alterar profundamente o referido Decreto-Lei aproveitando o momento actual em que já tem em discussão pública uma proposta de alteração mas que não toca em nenhum destes aspectos. Não basta alterar o âmbito dos ciclos de escolaridade para cujo ensino se obtém formação, como se escreve na proposta, regressando a 2006, separando inteiramente a docência dos 2º e 3º ciclos e acabando com o professor tetradisciplinar dos 1º e 2º ciclos, instituído em 2007. É preciso ir mais longe e formular objectivos e conteúdos de formação gerais e específicos deixando às IES uma margem de 30% de liberdade na estruturação dos curricula de formação.
Penso que esta orientação vai ao encontro do que se estabelece no § 7º do DR 7/2003: «(…) o Ministério da Educação e Ciência continua a envidar todos os esforços para que a formação inicial de professores seja progressivamente melhorada, em particular incrementando o conhecimento aprofundado por parte dos estudantes candidatos a professores das matérias que pretendem lecionar.».

Quanto à prova de acesso, penso que o Governo deve adiá-la pelo menos um ano, para dar tempo aos candidatos e às IES, e publicar os objetivos e tópicos da mesma. O que está estabelecido sobre esta estrutura é demasiado vago e os candidatos não têm tempo para se preparar. Do mesmo modo, deve dispensar dela todos os docentes que já realizaram o período probatório. Ou, então, só considerar as provas para efeitos de regulação do sistema.

Henrique da Costa Ferreira
17/11/2013


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