Manuel Igreja
Uns Gatafunhos e a Linha do Douro
Caso sucedesse este pequeno meu escrito lhe estar a ser apresentado no modo como lhe foi dada a primeira forma, o mais certo seria jamais em tempo algum ele ser lido e muito menos treslido.
Acontece que foi inicialmente manuscrito sem recurso às modernices das teclas, coisa que se virmos bem nem sabemos como funcionam. Carrega uma pessoa num botão, e logo aparece uma letra desenhada. Ele há coisas!
Mas pronto. Outras há de bem maior espanto e já se nos não arregalam os olhos perante elas. Sinal dos tempos. Indo ao assunto de antes deste pequeno desvio, deixem que lhe diga que a impossibilidade de leitura, brotaria por duas razões cada qual a primeira.
Uma, porque confesso, escrevo tamanhos gatafunhos que nem eu mesmo passados uns minutos sei assim lá muito bem o que significam os rabiscos a que o bico da caneta deu forma. Mas com um migalho de esforço lá adivinho depois de juntar as peças e de me ocorrer a lembrança da ideia.
A outra e a que mais monta aqui nesta nossa conversa, tem a ver com o pormenor de o papel antes completamente alvo, ter sido rabiscado durante uma viagem por via férrea entre a invicta cidade do Porto e a mui garbosa cidade da Régua, ou antes, do Peso da Régua para não ferir algumas sensibilidades, por quem sois, muito recentemente, mas em comboio do tempo dos Afonsinhos.
Se os gatafunhos de índole própria já eram de se lerem com muito custo, então os do final nem é bom falar. O documento a que seria dada estampa, iria taxativamente parecer-se com um registo de sismógrafo ou de um eletrocardiograma por exemplo, por tantos serem as linhas pontiagudas e em sinusoide afincadamente elaboradas.
A locomotiva andava e tremia que nem varas verdes. A cada arranque parecia que se desconchavava, mas depois que nem récua com alimárias de freio nos dentes, seguia linha afora em velocidade quase estonteante de umas boas dúzias de léguas por hora. Digo eu pois assim se me afigurava.
Enquanto isso, a cada tremida da pobre coitada a pobre da minha mão direita, não conseguia obedecer aos mandos do cérebro remetidos para a caneta para que ela desenhasse devidamente cada letra como lhe compete, dando forma a cada ideia, pois foi para isso que Deus Nosso Senhor deu saber aos homens para a inventarem.
Mas não, a tarefa foi-se revelando quase impossível. Por altura da Livração optou o escriva por desistir da empreitada. Foi-se à leitura. Outra coisa impossível. Nem sei se eram as linhas do livro, ou se os olhos, que andavam para cima e para baixo naquele verdadeiro carrocel. Entardecia e como o usufruto da paisagem sublime depois de Mosteirô não seria possível, restava-me uma soneca, algo fácil dada a minha proximidade com o deus Morfeu. Mas já não valia a pena.
Aliás, nem o frio tipo corrente de ar que circulava na carruagem permitiria conforto para tal. Fiquei-me pelo deixar escorrer o tempo até ao final da jornada com o pensamento solto por aí por tantas coisas que sempre merecem a pena e a que na voragem nem sempre se liga.
Ficou este desabafo que antes de tudo é um lamento. Uma condenação até. Quer dos que na modernidade fazem com que na Linha do Douro se viaje sem conforto e rapidez aceitáveis, e de nós todos que nos alegramos muito quando louvam a nossa região, mas não nos sabemos dar ao respeito.
Depois, o comboio lá seguiu, acho eu, linha acima e depois linha abaixo. Tum, tum catrum, catrum, apito aqui, apito ali. Faço o favor, mostre-me o seu bilhete.