Fernando Campos Gouveia

Fernando Campos Gouveia

Vai uma rifa, cidadão ?

Vivemos numa época em que toda a certeza se perdeu e as apregoadas justas expectativas são só para quem pode fazer valê-las na cumplicidade com o poder ou com a força que resulta de posições de domínio. Os cidadãos perderam há muito a segurança do emprego, a garantia de direitos, a segurança das suas pessoas e bens, o futuro dos filhos e netos e, agora, até a confiança na magra pensão de reforma.
No Estado liberal é cada um por si, o governo passou a ser o coveiro das certezas e o arauto da liberdade – interessante como até nos roubaram a segurança das palavras – da liberdade do capitalismo selvagem e das máfias que ganharam raízes no cadáver do Estado.

Não sei onde foi a administração fiscal buscar a ideia dos sorteios de automóveis de gama alta para levar os cidadãos a tornarem-se fiscais da cobrança do IVA. Já vi escrito com alguma ponta de ironia que a administração fiscal passou a ser uma administração pimba. A degenerescência das instituições é de tal ordem que um dia destes acordaremos a pensar se ainda há Estado, ou se a aparência de Estado é apenas uma corja de capatazes ao serviço de meia dúzia, ou, vá lá, de algumas centenas de grupos monopolistas, que utilizam esses capatazes para sugar os restos dos povos, numa ânsia de concentração de riqueza que só pode levar ao abismo coletivo.

Para além deste panorama político global, há em cada um dos países, como agências duma mesma ideologia, algumas particularidades que se manifestam no dia-a-dia dos cidadãos. A perda de certezas e de justas expectativas leva muitas vezes ao desespero que se manifesta das mais variadas formas: há os que desistem, há os que deitam mão de qualquer expediente, há os que lutam contra a corrente, há os que bajulam o sistema. São tudo sinais do mesmo desespero. Mas há quem aproveite. Um desesperado pode aceitar um trabalho por uma côdea de pão ou uma malga de sopa, pode dispor-se a fazer um trabalho sujo de encomenda, pode fugir para longe ou suicidar-se no isolamento mais absoluto; mas pode também telefonar para um programa de televisão, gastando os últimos cêntimos que tem em casa ou fazendo-o do telefone do emprego, na esperança última de ganhar um mirífico prémio que lhe abre as portas da felicidade.

Quem chega a Portugal e vê os canais abertos da nossa televisão pensará que chegou a um casino. Os programas da tarde passam seguramente metade do tempo de antena a pressionar os espectadores para o telefonemazinho que vai mudar a sua vida por apenas…sessenta cêntimos. Já não há diferença entre operadores: tanto os operadores privados como a RTP entregam-se a esse jogo indecoroso de espoliação das franjas mais vulneráveis da sociedade, aquelas que, por estarem isoladas, estão mais dependentes desses vendedores de banha da cobra, extorquindo-lhes, mediante uma apresentação enganosa e perversa, os magros tostões de reformas ou os pequenos mealheiros destinados ao essencial. É isto a liberdade do liberalismo: deixar fazer, não regular nem para impor a proteção dos mais fracos nem limitar a aldrabice pegada duma publicidade agressiva, quase assédio psicológico.

Não sei como se chama essa forma de espoliar cidadãos fragilizados. Parece que lhe chamam, nuns casos, programas interativos, noutros casos, serviços prestados à distância, chamadas de valor acrescentado e outras habilidades. Lembro-me que, num país que ainda merecia esse nome, as rifas, lotarias privadas e outras formas de recolha de dinheiro do público eram um privilégio do Estado, que o cedera à Santa Casa da Misericórdia como forma de alimentar obras sociais. Agora, o apetite do jogo é canalizado para encher os bolsos das televisões, para lhes alimentar os programas mais manhosos e mais alienantes.

Administração fiscal e programas de televisão passaram a fazer concorrência aos quiosques e aos vendedores de cautelas. Os correios já nos vendiam livros e coleções, mas passaram também a vender jogos.

Previna-se quem quer que tenha de dirigir-se a um serviço público ou concessionado. Não estranhe que, ao dirigir-se a um balcão das Finanças, a uma estação de correios ou até ao banco de urgências, em vez do tradicional bom dia, seja recebido com o moderno pregão: vai uma rifa, cidadão?


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