Teresa A. Ferreira

Teresa A. Ferreira

Viagem às raízes

  Viagem às raízes:  1º capítulo  

Muitos foram os nomes de terras, que minha mãe lançava ao ar, conhecidos da infância, memórias que manteve, bem vivas, toda a vida. Contava-nos que tinha nascido no Pádua Freixo, Aguieiras, Mirandela, e, assim que um irmão estivesse para nascer, era mote para ir para casa dos avós maternos em Gestosa de Lomba, Vinhais. Adorava ir para lá. Recebia mimos de todos e a liberdade era outra. Falava-me em parentes espalhados por todas as aldeias das redondezas. Era uma beleza escutá-la a nomear tios e tias, primos e primas que tinha em Vilar Douro, Vilar Seco de Lomba, Sandim, Guadramil, São Jomil, Nuzedo, Soutilha, Casario, Fonte Maria Gins, Chairos, Ervideira, Vale de Janeiro, Sonim, Vale das Fontes, Lebução, Vilartão… E eu viajando ao som de nomes tão sonantes quanto desconhecidos, num doce encantamento até à sua infância, ansiosa por saber mais e mais sobre tão numerosa família.

As histórias que ouvia, numa atenção mais do que redobrada, transportavam-me para sítios fantásticos onde a imagética, funcionando num ápice, acabava por incorporar novos elementos dando-lhe singulares matizes.

Minha mãe nasceu a 16 de Dezembro de 1926, tendo recebido por nome próprio América. Este singular nome, além de a tornar distinta, foi também alvo de muitas graças. Meu avô, Cândido, na época da segunda Guerra Mundial metia-se com o vizinho da frente:

- António! Não se apoquente, homem! A guerra está ganha. Eu tenho a América; e vossemecê, a Vitória. – risada pegada no povo. O que é que havia de ter dado na cabeça destes vizinhos para porem estes nomes às filhas?!

Homem de posses, meu avô, ocupava-se de gerir as terras e os trabalhadores. Gabava-se de nunca ter tocado numa enxada. Em jovem viajou para o Brasil, onde casou, e, para seu desgosto, enviuvou no parto do filho. Casou de novo, com a cunhada, e o triste fado repetiu-se, enviuvou no parto da filha. Pegou em meus tios, José e Júlia, e regressou a Portugal.

Apresentou-se na terra com as crianças e, para espanto de todos, vinha sem mulher. Contou o infortúnio, que se havia abatido sobre ele, e como tal o levara a desistir da vida no Brasil.

Ora, que triste destino! Um homem, viúvo, com duas crianças pela mão, condoía qualquer coração! 

A família, vendo-o em tão difícil condição… Reuniu-se em conferência - sendo que meus bisavôs eram irmãos -, tendo decidido casá-lo com minha avó, não só pela condição de viuvez, mas, também, para manterem o património da família.

A doce avó Alcina, que mal conheci, nascera e vivia em Gestosa de Lomba, era prima direita de meu avô.

Após o casamento foram viver para o Pádua Freixo, Aguieiras.

Os filhos foram nascendo e alguns morrendo, em pequenos, tendo chegado onze a adultos. Minha avó teve gémeos em três partos.

Nenhum filho, homem ou mulher, foi à escola por iniciativa do pai, apesar de meu avô ser instruído, mas era tacanho. Os filhos serviam-lhe para trabalhar no campo; e as meninas, para ajudar a mãe nos cuidados da casa. Alguns estudaram em adultos.  

Aos domingos ia para a taberna jogar à batota. Enquanto se conservava sóbrio, ganhava. Era vê-lo de sorriso malandro e olhar emproado a bater cartas. Os compinchas, sabendo da fraqueza que tinha com o vinho, ofereciam rodadas, e ele lambia-se limpando os beiços às costas da mão. Chegou a perder terras, juntas de bois e o que mais apetecesse aos camaradas de jogo.

Minha tia Maria era a mais velha do terceiro casamento e minha mãe vinha a seguir. Eram inseparáveis. Onde pisasse uma… estava a sombra da outra. No dizer de minha mãe, a tia Maria tinha a doença do sono - adormecia em qualquer lado.

Próximo da hora de almoço, minha avó pediu-lhes que pegassem no burro e fossem levar o comer aos homens, que andavam a trabalhar no campo. A tia montou-se no burro e pôs a giga com o almoço à frente; minha mãe seguia a pé, com as rédeas pela mão. Pouco depois, já a tia dormia com a cabeça ao pendurão. Malandra até não poder mais, eis do que se lembrou minha mãe: cortou uma haste de silva e chegou-a à traseira do burro. A festa estava armada! Mas que grande desatino de pinotes e zurros! O almoço fora para os diabos; a tia voou para o chão, permanecendo num pranto de muita dor e aflição de uma mão; e minha mãe agarrada à barriga de tamanha risa. O resultado da brincadeira foi além disto. A tia ficara com o dedo mindinho, da mão esquerda, partido. Havia que ir com ela ao endireita.

Muitos anos volvidos, visitei esta tia em São Paulo, Brasil. Mantínhamos contacto próximo, que se tinha intensificado após a morte de minha mãe. Lembrei-me da história do burro e resolvi pedir à tia que me contasse tudo. A história era verdadeira e para confirmação mostrou-me o dedo com uma curvatura, por não ter curado bem.

Que tia tão doce! Fui abençoada com beijos, abraços e muitos mimos. Fez uma feijoada e para começo pôs-me a beber uma caipirinha de deitar fogo pelos olhos!

Contou-me que, em garota, minha mãe era endiabrada! E foi desfiando histórias... Que tinha um jeito - muito próprio - de se afirmar, a pontos de derreter o avô Cândido. No entanto, sempre lhe vira um grande e generoso coração.

Antes de servir a ceia, a avó Alcina, pediu à minha mãe para ir buscar um jarro de vinho, à adega - ficava por baixo da zona de habitação, bem ao pé dos arrumos e da loja do burro. E o que é que havia de ter dado na cabeça da garota?! Pôs-se debaixo da pipa, a provar o vinho. Dando pela demora, mandou minha tia Maria ver o que é que se passava.

E lá estava ela... ao pé das pipas... zonza... sem se endireitar nas pernas... a fala entaramelada... 

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Texto:

Teresa do Amparo Ferreira, 28-05-2021

Foto: Minha mãe, América Augusta.

 


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