Teresa A. Ferreira
Viagem às raízes - 2ª parte
Viagem às raízes - 2º capítulo Os dias iam correndo na exata precisão da vida do campo, sendo que minha mãe era campeã em dar-lhes outro colorido. Andando entretida nos seus afazeres, escutou minha avó nesta conversa: - Ó Maria, Maria?! - Sim, minha mãe? - Anda cá, filha. Minha tia apresentou-se num estalar de dedos à sua beira, na cozinha. - O que me quer, a senhora? - Pega nessa cesta e vai lá baixo à horta. Colhe um braçado de couves-galegas - uma folha em cada pé, não te esqueças, rapariga; e de caminho, colhe tantinho feijão-verde - mas faz cuidado, não tragas do grado -, só do mais tenrinho. Vai lá. Anda que se faz tarde. Ainda tenho o jantar por fazer. “Ai América, América! Do que te foste lembrar!” Nisto, minha mãe desapareceu de casa como que por magia. Esfumou-se a garota. A horta ficava perto; e o recado era fácil de cumprir. Entretida a colher as couves, minha tia, dá por algo de estranho a acontecer com o espantalho, que estava armado na horta. Como já anoitecia, não reparou bem o que era. Nisto, o espantalho começou a mexer os braços - mais vigorosamente -, e a entoar uns dizeres com uma voz de estarrecer qualquer um: Sou uma alma do outro mundo. Ai, a pobre da minha tia! Espavorida, atirou com a cesta ao chão e fugiu para casa. Os calcanhares?... Até lhe batiam no cú! - Ó minha mãe, minha mãezinha, acuda aqui, acuda aqui, que eu não posso mais! – chorava como uma Madalena e as faces lívidas como a cal. - Ó garota, o que te aconteceu, criatura de Deus? - Mãezinha: está uma alma penada na horta, que me quer levar pro outro mundo. - nem esperou que a mãe desse troco à conversa, tratou de relatar o acontecimento entre lágrimas e fungadelas do nariz. - Não te fies nisso, minha filha! São histórias do povo. Deixa pra lá. Põem-se a contar destas coisas aos garotos - dianho das pessoas -, e depois dá nisto! Garotos assustadiços, coitadinhos. – aconchegando-a no regaço, cobria-a de beijos e carinhos para lhe sossegar o coração, que batia desalmadamente. Pouco depois, apareceu minha mãe com a cesta no braço, repleta de couves e feijões, e um sorriso de malandra envaidecida. - Olha a alma do outro mundo, Maria! Aí a tens à tua frente. Malvada da garota! Pro que lhe havia de dar. Raios parta a canalha que não é capaz de me dar sossego. A minha tia Maria?! Ui! Que danada ficou. Não sabia ao certo o que mais a arreliava: se fora o susto ou ter sido engana pela irmã mais nova. Combinaram, entre as três, não aborrecer o meu avô com a história, não fosse dar-se o caso de despertarem o mau génio ao “Lorde inglês”. Em investigações que fiz, encontrei um título nobiliástico na família de minha mãe. Deu-se o caso de que tal nunca mereceu interesse, para ela, e eu deixei a coisa ficar por aí. Sendo nobre ou não, ou trejeitos que mantinha da fina flor brasileira, meu avô tinha uma postura pomposa e distinta. Falava corretamente a língua mãe, e tratava as pessoas por você. Homem instruído e viajado tinha garbo em ser benfeitor. Estes predicados eram o suficiente para armar procissão à porta de casa, quando chegava o correio. Mães, aflitas para que lhes lesse as cartas dos filhos, que andavam mundo fora; esposas à espera de novas dos maridos; rapazes a pedir notícias das namoradas; e assuntos mais correntes. A todos atendia com estima e consideração. “Que bom homem, o Senhor Cândido.” – dizia o povo. O pior era em casa. Ninguém podia pôr o pé em ramo verde que era brutamente castigado. E se minha avó fosse socorrer um filho, também sobrava para ela. Que génio estuporado tinha o homem! Minha avó Alcina - filha mais velha de quatro irmãos, nascidos em terras de Vinhais, mais concretamente em Gestosa de Lomba -, era uma doçura em pessoa. Seguia-se a tia-avó Helena. Dei com ela, quando fui para a Faculdade em Lisboa. Vivia na Lapa, num terceiro andar de escadas bem difíceis. Era viúva e tinha apenas um filho, o Joaquim. Não o cheguei a conhecer. Mais tarde, também em Lisboa, acabei por conhecer o tio-avô, seguinte, Manuel, igualmente um doce coração. Solteiro se manteve toda a vida. A mais nova era a tia-avó Inês, que conheci, por volta dos meus 15 anos, numa ida com minha mãe e seus irmãos, Carolina e Chico, a Gestosa de Lomba. Casara com um senhor do qual não tinha filhos, embora ele tivesse um ou dois, não estou certa, de um casamento anterior. Recebeu-nos em grande felicidade quando nos viu à entrada do portão da propriedade. Fiquei presa nas nuvens em Gestosa de Lomba. Ali, era a raiz dos meus antepassados; das idas de minha mãe para casa dos avós; das imensas histórias que há por contar. Quanto gostaria que me contassem essas venturas passadas, e outras histórias, tudo num fervor para me reencontrar, saber de onde vim, quem era toda esta gente. Voltando atrás, a 1 de Setembro de 1939, o mundo entrava na Segunda Guerra Mundial, e Portugal tinha sido arrastado para a fome e para a miséria. Nesta data, minha mãe contava doze anos de idade. Muito estava para acontecer... … Texto e imagem: Ⓒ Teresa do Amparo Ferreira, 04-06-2021 Foto: Espantalho em São Pedro Velho, Mirandela, Portugal |