Teresa A. Ferreira
Viagem às raízes - 3ª parte
Viagem às raízes - 3º capítulo
Bem antes de ter começado - a Segunda Guerra Mundial -, fez-se anunciar de mansinho. E a prova disso foi o acordo que Salazar fez com a nossa aliada, de mais de 600 anos, Grã-Bretanha e o tratado de não-agressão mútua, efetuado com Espanha. Sabia-se, no círculo das grandes esferas europeias, quem era A. Hitler e Mussolini e para onde caminhavam os destinos do povo europeu.
Portugal manteve-se neutro mas não foi poupado à fome e à miséria que mais intensamente atingiram as classes baixas e médias. A classe média tinha sido esmagada. Os assalariados viviam bem abaixo do limiar da pobreza. Gente descalça, votada à mendicidade, pululava em toda a cidade de Lisboa. Brotavam barracas como cogumelos. Salários baixíssimos - congelados -, cobriam apenas 70% das necessidades básicas da família; não havia direitos sindicais; desemprego a aumentar por conta do encerramento de fábricas devido à falta de matéria-prima; custo de vida a subir constantemente; escassez de alimentos para a maioria das pessoas, enquanto outros os açambarcavam; famílias analfabetas, sem formação profissional e numerosas; a esperança média de vida para os homens situava-se entre os 36 e 39 anos e para as mulheres entre os 41 e 44 anos; elevada mortalidade infantil (em cada mil nascimentos havia 150 óbitos, antes de completarem um ano de vida); condições deficitárias na assistência médica e medicamentosa; má nutrição gerando vários tipos de doenças; gente a fugir do campo para a cidade, à procura de melhores condições de vida; e a balança comercial em níveis positivos como nunca antes tinha acontecido. Exportávamos latas de conserva e, sobretudo, volfrâmio para a Alemanha e para a nossa aliada Grã-Bretanha; havia um forte incremento de receita económica proveniente dos transportes marítimos e serviços; sem contar com a cortiça e o azeite que eram exportados por via marítima para a Rússia (transações mais ou menos secretas, embora não acredite que o fossem, totalmente, - assim me contou minha mãe).
As consequências da guerra tinham chegado à mais pequena aldeia transmontana, Pádua Freixo - Aguieiras. As famílias que tinham terras para cultivar e animais domésticos, a custo conseguiam levar a vida, comendo os alimentos que produziam e vendendo o excedente. Aqui havia um senão: vender a quem se nas aldeias também havia gente pobre, sem terras de cultivo ou pastoreio, nem dinheiro?
Quantas vezes ouvi minha mãe dizer:
- Uma sardinha?! Toma nota, Teresinha: era repartida por três ou quatro filhos! Tu que pensas, minha filha? Achas que era como agora? O que aqui sobra e vai para as galinhas dava para matar a fome a muita gente.
E eu, de olhar sereno, escutava-a com muita atenção. Sempre me entusiasmou saber, de viva voz, sobre o passado da minha família. Talvez, à procura de um mundo fantástico onde bebesse inspiração para desenhar o meu futuro.
Nem sempre passavam as sardinheiras, que andavam pelas aldeias a apregoar o peixe. Tez curtida pelo sol, descalças, algumas, outras com uns socos, carregavam uma caixa de madeira com vinte e cinco quilos de peixe, colocada em cima da cabeça. Pegando numa ponta de um pano, enrolavam-no até formar um canudo, depois, faziam uma cornucópia com ele a que davam o nome de rodilha. Esta era colocada ente a cabeça e a caixa do pescado, amenizando o desconforto do peso. Era uma animação ouvir os pregões que soltavam. A garotada, em alvoroço, acorria à varanda ou à rua para ver a novidade, que para os seus olhos de meninos era sempre nova.
Minha mãe, via crescer a família numa cadência mais ou menos certa: a cada dois ou três anos, nascia um irmão, num total de treze dos três casamentos de meu avô Cândido, sendo que só sobreviveram onze. Nos seus doze anos, além dos três irmãos mais velhos, José, Júlia e Maria, tinha a Carolina, a Albertina e o Alberto. Os irmãos Chico, Domingos e os gémeos Pedro e Virgínia nasceram depois.
A vida foi correndo, apesar dos pesares da guerra, e, volvidos dois anos, minha tia Maria perdeu-se de amores por um rapaz lá da terra. E que belo rapaz era o Viriato! Mas este romance, que parecia ir de vento-em-popa, sofreu um grande revés.
Viriato envolvera-se com uma rapariga, num palheiro, e arranjou-lhe uma filha. Fogo de palha da mocidade. Mas, Viriato, não lhe tinha afeição. Tratou, então, de marcar um encontro com a minha tia Maria para lhe expor a situação:
- Maria, minha querida, escuta-me com atenção: há uns tempos, perdi a cabeça. Não sei onde a tinha com os dianhos. E, conversa vai, conversa vem, quando me dei conta, estava no palheiro com a A. Mas, eu não gosto dela. Só caso contigo, Maria; com ela, é que não pode ser. Aquilo foi um deslize. Perdoa-me Maria. E agora, tenho a família da A., com ameaças, para me obrigarem a casar. Não pode ser. Não caso e está resolvido.
Deste encontro resultou que minha tia o perdoou e tomaram uma decisão: iriam fugir para Lisboa. Viriato tinha lá família que os poderia ajudar.
Dito e feito. Apanharam um carro de praça que os levou a Mirandela e daí seguiram de comboio até Lisboa. Chegados à estação de Santa Apolónia, esperava-os uma irmã de Viriato que os acompanhou até uma pensão onde ficaram instalados. De imediato, tratou de arranjar emprego ao irmão na estação dos Correios da Praça do Comércio.
Dois jovens, perdidos na capital, caídos de chofre num imenso mundo novo. Minha tia foi-se adaptando aos novos ares de Lisboa. O companheiro Viriato adorava-a e tudo fazia para que ela se despisse dos jeitos campestres e se renovasse. Foi à cabeleireira cortar o cabelo, pintar as unhas e arranjar-se como as raparigas da cidade. Tudo isto era impensável na aldeia de onde partira.
Logo que lhes foi possível, casaram. Entretanto, minha tia ficou grávida.
Era tempo de Páscoa, em 1941…
Meu avô Cândido tinha a seu cargo a receção e distribuição do correio no Pádua Freixo e algumas aldeias vizinhas. Do que se lembrou minha avó Alcina? Fez o folar para a família e tratou de enviar uma encomenda com folar, e outros agrados de mãe, à filha Maria.
Nessa altura, minha tia Maria já estava com a gravidez bem adiantada, mas tudo corria bem. Até que o tio Viriato chegou a casa e lhe disse que havia uma encomenda da mãe nos Correios, mas que a traria no dia seguinte. Pobre tia Maria. Ficou com ânsias de comer o folar da mãe - mimos que a todos consolam -, não tendo sossegado mais, nem sequer pregou o olho toda a noite! E o dia seguinte foi uma verdadeira agitação até o marido chegar com a encomenda.
O certo é que o menino nasceu morto para grande desgosto de meus tios.
No Pádua Freixo, minha mãe continuava a fazer algumas tropelias, sendo que a última tinha desagradado ao pai. Aquilo com que nunca contara acabou por acontecer. Meu avô resolveu bater na filha com catorze anos. Indignada com a situação, fugiu para casa de uns parentes que tinha no Casario, e, com a ajuda destes...
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Texto:
Ⓒ Teresa do Amparo Ferreira, 11-06-2021
Foto: Casa de fado no Bairro Alto em Lisboa.