Teresa A. Ferreira
Viagem às raízes - 9ª parte
No final da hora acordada, foram a contas.
Quem terá conseguido sentar mais moças no banco do jardim?
Perante o charme e boa apresentação de José Benedito Pires, não havia muito o que contar, juntou cerca de vinte moças, enquanto o Iriberto, nove.
Este episódio fortaleceu-lhes a amizade. A aposta fora pura brincadeira, sem consequências além de uma boa risada e um abraço arrochado entre duas almas puras.
No ano em que Iriberto completou quinze anos, juntou-se-lhe um novo elemento da família, o primo Orlando dos Santos Ferreira, que acabara de ficar órfão.
Orlando nasceu a 11-10-1947, em Torre de Dona Chama. Era o segundo filho de Olímpia dos Anjos, natural da Soutilha – Aguieiras, e de Mário Augusto Ferreira, natural de Torre de Dona Chama, irmão da mãe do Iriberto - Joaquina Rosa -, do tio Alfredo, da tia Ana e da tia Maria. Do casamento de Olímpia e Mário, nasceram dois rapazes, sendo que o mais velho veio a falecer com cerca de três anos.
O casal, Olímpia e Mário, vivia bem, embora os tempos fossem difíceis para a grande maioria da população. O tio Mário tinha uma boa oficina de motorizadas e bicicletas, em Torre de Dona Chama, ali para os lados da moagem e do lagar do azeite. Quando Orlando estava quase a completar três anos, perdeu sua mãe, devido a complicações adversas relacionadas com uma injeção, que o médico lhe ministrara. Passado algum tempo, o pai do Orlando conheceu uma senhora espanhola com quem tinha casamento marcado.
Nos preparativos para o casamento, o tio Mário pegou na bicicleta e foi buscar o vinho para o banquete. Chegado ao entroncamento do largo da feira, ao pé da taberna da ti Maricas, apareceu um carro que o atropelou mortalmente. O carro não tinha seguro e tudo ficou por ali, sem que ninguém exigisse qualquer compensação pela tragédia.
O Tribunal decidiu consultar a família, materna e paterna do menor, tendo decidido entregar a guarda ao tio Alfredo, que se tinha prontificado a acolhê-lo.
Com cinco anos de idade – Orlando -, deparou-se com a nova realidade - deixar todo o seu mundo para trás -, e ir viver para Mirandela, onde nada conhecia.
Os primos dormiam num espaço mal-amanhado, por cima da oficina, onde havia ratos e as condições eram deploráveis. As roupas que a tia Antoninha lhes dava para vestir, eram velhas e muito remendadas, tinham vindo de outros membros da família.
Sendo o tio Alfredo “Caldinho”, alcunha que ganhara em moço na sua terra natal, um homem de negócios - prosperava com a oficina e na lavoura -, tinha muita gente a trabalhar para ele. Também a sua irmã Ana lá trabalhava, fazendo de tudo, no campo e em casa.
Ai, a tia Ana! Condoía-se com os sobrinhos. Sabedora de que eles não andavam bem alimentados, às vezes, aparecia no sótão com um pedaço de pão ou alguma fruta para lhes dar. Os rapazes não tinham ordem de comer com os tios; comiam com os criados da casa; e, como eram tímidos, acanhavam-se a comer. A tia Ana era tão carinhosa com os sobrinhos. Mas mais não podia fazer. A condição de criada do irmão e da cunhada, não lhe permitia larguezas.
A casa que o tio Mário tinha na Torre, foi vendida e comprada outra de igual valor em Mirandela, em nome do único herdeiro, Orlando, exigências do Tribunal.
Assim que o Orlando completou a idade para ingressar na escola primária, o tio Alfredo mandou-o estudar. O Iriberto continuava de criado de toda a família.
- Peço desculpa ao leitor pelo uso inadequado do termo “criado”. O mais correto e assertivo, que se aplicava à situação, era “escravo”. Um criado recebe ordenado; não era o caso do Iriberto. Um sobrinho não dorme nos arrumos por cima da oficina, onde reinavam miséria, frio, calor e ratos. Um sobrinho não come com os criados. Um sobrinho, que trabalha de sol a sol para os tios, não veste as roupas velhas, gastas e remendadas, que ninguém quer. Um sobrinho, que tudo deu de si aos tios, deveria ser tratado com carinho e amor.
Assim que completou dezoito anos, tendo em conta o problema provocado pela poliomielite aguda na infância, Iriberto, pegou no dinheiro que tinha conseguido juntar das gorjetas e resolveu pedir ajuda médica, no sentido de ser operado aos tendões, porque a perna não estava a crescer regularmente. Acabou por ser operado no Hospital de Santo António no Porto, em época natalícia. A operação aos tendões correu bem. O pessoal médico e de enfermagem, mal se viam no hospital. Meteram férias. Os pensos, que deveriam ser trocados e as suturas limpas e desinfetadas, não tiveram qualquer intervenção humana. O resultado foi tremendo. Uma gangrena no pé e nova intervenção cirúrgica para amputação de parte do pé.
Triste fado de vida. Mas Iriberto não esmorecia. Encarava a situação com a tenacidade com que um jovem de dezoito anos encara a vida – melhores dias virão.
Continuou a trabalhar no tio Alfredo, com o intuito de juntar um pé-de-meia com as gorjetas, para, assim que pudesse, largar aquela vida. O hospital tinha-lhe saído bem caro - fisicamente e no bolso.
A camaradagem com o José Benedito Pires, singular figura entre as moças de Mirandela, seguia de vento-em-popa.
Certo dia, entraram na loja de tecidos, uma bonita moça e a avó. De pronto, foram cumprimentadas pelo simpático empregado – José Benedito.
- Ora vivam! Muito bom dia. O que desejam Vossas Excelências?
- Bom dia, Sr. José. Vimos à procura de um tecido para fazer um vestido, aqui para a minha Madalena.
- E já pensaram no tipo de vestido? É para levar a uma festa, para o dia-a-dia….? É só para as orientar no tipo de tecido.
- É um vestido para o dia-a-dia, mas a Madalena quer que seja rodado. Coisas de moça!
- Têm Vossas Excelências aqui este lote, acabadinho de chegar do Porto. Estes tecidos são a última moda por lá. Vejam só que padrões tão bonitos e elegantes, não acham? Vão assentar que nem uma luva em tão bela senhorita.
Tantos tecidos viram que acabaram por se decidir por um belo padrão floral em tons rosa suaves.
- Sr. José: quanto custa o metro deste tecido? – perguntou Madalena.
- Ó menina: por ser para si, custa um beijo cada metro.
Puseram-se a fazer contas - avó e neta -, sobre a largura do tecido e de quantos metros seriam necessários para o vestido.
- Sr. José: pode cortar cinco metros deste tecido. – disse Madalena em tom resoluto.
- É para já, menina. E não vão precisar de linhas, botões, colchetes, tecido para o forro…
- Não, Sr. José. É só o tecido. – respondeu a avó da Madalena.
O desenvolto José Benedito tratou do assunto, com avidez e a maior das alegrias. Os olhos brilhavam-lhe como cristais iluminados pelo sol. E não era para menos. Madalena era um encanto de moça, uma formosura. Colocou o embrulho, feito com todo o esmero, em cima do balcão, e desprendeu um largo sorriso para Madalena como quem esperava o prémio mas desejado nos seus dias de glória.
- Quanto devemos, Sr. José? – questionou Madalena.
- Menina: cinco metros, cinco beijos. – e o rosto, todo ele se iluminava, esperando com sofreguidão o mais almejado pagamento.
Madalena, que de parva nada tinha, respondeu…
…
…
Texto e fotos:
Ⓒ Teresa do Amparo Ferreira, 23-07-2021
Foto 1: Pelourinho, Berrão e torre sineira da Igreja de Nª Srª da Encarnação em
Torre de Dona Chama, Mirandela, Bragança, Portugal.
Foto 2: velhinha máquina de costura de Alice Doutel em
Torre de Dona Chama, Mirandela, Bragança, Portugal.
Foto 3: Rio Tua em Mirandela, Bragança, Portugal.