Manuel Igreja
Vinho do Porto: Crónica de uma morte anunciada. Ou talvez não.
Durante muitos tempo e até há poucos anos, o vinho do Porto era a essência e a excelência suprema na viticultura duriense. Identificado como um vinho muito bem cheirante por um estrangeiro que por aí andou, e mercê de certas circunstâncias históricas, um tratado comercial celebrado em 1703 entre Portugal e a Inglaterra, atingiu uma importância nunca vista em outro qualquer produto comercial.
Quando muito, poderemos dizer que se lhe equipararam a canela e a pimenta na época dos Descobrimentos, já que o ouro foi desbaratado, mas tenho para mim, que nem esses lhe chegaram às aduelas, que é como quem diz, aos calcanhares, com o devido pedido de perdão por falta de isenção da minha parte.
Mas volvendo ao cálice pois isso é vinho de outra pipa, como diz o povo. Após ter sido identificado como um vinho de muito se gostar, o vinho do Porto, em poucas décadas virou um produto económico suscetível de acrescentar valor. Assumiu-se como sustentáculo de muita riqueza e chão para muita beleza.
Foi levado para os quatro cantos do planeta. Foi sem ser nomeado oficial ou oficiosamente, Embaixador de Portugal no mundo conhecido. Igualmente sem que alguém o escrevesse, virou tesouro nacional. Serviu de garantia para alguns empréstimos monetários da Nação, foi queimado na guerra civil entre Liberais e Absolutistas para lhe impedir esse papel, a riqueza dele resultante possibilitou o esplendor da cidade do Porto, por exemplo, e para me não atardar mais e irmos em frente.
Melhor, e indo à origem e à causa das coisas, o Alto Douro vinhateiro, onde as vides se cuidam como filhas para darem cachos graças a muitos cansaços e a mil canseiras, a muitos cuidados e muitos esmeros como só a lavoura sabe ter, fazer e sentir. Quase num nada, no meado do século XVIII, logo depois e até à última vintena de anos do século XX, o vinho do Porto era o alvo de todos os cuidados. O outro, o de mesa, como soe dizer-se, era como se fosse filho de um deus menor.
O vinho do Porto era uma instituição. Bebia-se mais no estrangeiro que em Portugal, mas bebia-se, apreciava-se e vendia-se. Era fácil. Enquanto produto exclusivo, inimitável, o mercado estava feito. Era só carregar os carros de bois, depois o camiões, os barcos antes dos navios, e a vida fluía ao sabor do néctar que se vendia e rendia a bom render quer para os comerciantes quer para os que no Douro tinham bens ao luar.
Beber vinho do Porto exigia sabedoria e dava importância. No fino recorte as coisas, exigia mesmo o seguir-se uma certa tradição para o devidamente apreciar. Exigia e exige alguma predisposição e educação no sentido de se saber ir dentro dele buscar a essência que leva à apetência. Quando assim não é, bebê-lo, pouco mais é que engolir um xarope ou um remédio para a constipação.
Foi assim durante muito tempo. Por isso ser tornou um produto de segmento. Um produto tendencialmente pouco apreciado e sem o se apreciar a ser passado às gerações dos anos que ainda não vieram. Aqueles que não sabem quem foram os Beatles, dificilmente saberão o que é o vinho do Porto. No entanto, se ontem era tarde, hoje ainda vamos a tempo, como escreveu um certo escritor.
Voltando ao rego de pois de lavrar no escrito algum otimismo. No Douro, onde as coisas inevitavelmente também mudam, a dado momento, os vinhos tranquilos com Denominação de Origem Controlada, os ditos DOC, começaram a ganhar fulgor, começaram a afirmar-se como negócio a desenvolver. Quase igualaram se é que não ultrapassaram já, o potencial enquanto produto comercial e empresarial.
O Alto Douro das vinhas, deixou de ser somente a terra do vinho generoso. Do fino, como também gostamos de dizer. O seu par, mas não concorrente, porque não é igual e é para se beber de modo diferente, ganhou espaço e pode ter um caminho mais facilmente seguro rumo ao futuro. A médio prazo pode vir a ser o noivo a escolher por se apresentar com melhor dote.
Bem sabemos que tem outros iguais e de muito lado, mas a leitura das páginas no livro da vida do agora, salvo melhor opinião, diz-me isto, sem que exclua que noutras páginas está outra realidade escrita. A ver vamos, como diz o cego.
No entanto, a notícia da morte anunciada em título pode ser exagerada. Quem me dera, num desejo que vem cá do meu fundo. Aliás, ela, a morte, é perfeitamente evitável. Basta que se use a inteligência, a sensatez, e se utilizem os ensinamentos contidos nos manuais de gestão ao dispor de todos. Não é preciso inventar nada.
Chega que se ensine e se olhe a como se produz o vinho do Porto, que se conte e se respeite a sua história, e que se ensine como lhe procurar os seus divinais sabores e ancestrais saberes.