PREFÁCIO
Domingos António nasceu em Pittsburgh, reconhecida como a cidade do aço, no nordeste dos Estados Unidos, mudando-se para a (ex-)União Soviética em 1991 com, tão somente, 14 anos. No Conservatório Tchaikovski, em Moscovo, o diamante em bruto é, finalmente, lapidado para nunca mais parar de cintilar. Colega na década de 90 de compositores que, atualmente, exercem uma influência determinante na música clássica e que encarnam o papel de ídolos para muitos jovens que neles se inspiram, o pianista de descendência transmontana refere-se ao seu instrumento de eleição como sendo uma “extensão do próprio corpo”, não podendo ser outro, o piano que, mesmo em criança e já na adolescência, lhe permitia libertar todas as suas frustrações, interiorizadas e acumuladas.
Já com quase quatro décadas de vida, optou no passado por viver alguns anos na região de Bragança, onde desenvolveu uma ótima relação com o teatro municipal, na pessoa da sua diretora, Helena Genésio, tendo atuado por diversas vezes no principal palco da capital do nordeste.
Conhecido por muitos pelo seu temperamento potencialmente complicado, próprio de um artista que roça a genialidade, no seu regresso a Trás-os-Montes, mais precisamente ao Teatro de Bragança, e no seu primeiro concerto em quatro anos, Domingos António provou ao Diário, sem necessidade e intenção de o fazer, precisamente o contrário, numa conversa tipicamente informal, ele abriu o seu coração e sem pudores, sem medos, expressou-se a si e só, por vezes, a sua mordaz, opinião.
ENTREVISTA
Diário de Trás-os-Montes (DTM): Porquê o piano e não outro instrumento? Qual é a sua relação com o piano?
Domingos António (DA): Eu acho que foi o primeiro instrumento que toquei. Aliás, a longo prazo é o mais versátil de todos os instrumentos a solo. Tem um maior alcance, tirando o órgão, e é muito mais compacto. Eu tenho memórias minhas no piano desde os dois anos de idade e foi aos sete anos que comecei a sério a aprender para nunca mais parar, desde essa altura.
DTM: É especial para si tocar em Bragança?
DA: É a terra natal do meu pai e, por isso, sim. É um pouco especial e tratam-me sempre bem aqui.
DTM: O facto de ter estudado num dos mais conceituados conservatórios do mundo foi decisivo não só no processo de aprendizagem do instrumento piano como, também, na sua educação e no próprio rumo que decidiu traçar para a sua vida?
DA: Se não tivesse estado na Rússia e se não tivesse passado tantos anos a estudar no conservatório, é claro que nunca teria chegado a este nível em que estou agora.
DTM: Como é que se define enquanto artista?
DA: Eu estou constantemente em busca de uma coisa intangível e é uma coisa abstrata. Não gosto de coisas gélidas. É como na arquitetura, por exemplo, eu gosto de coisas bem estruturadas, bem definidas. É como na música, também gosto dela bem definida, mas que tenha a capacidade de nos iludir e conduzir a nossa atenção para um ponto diferente. Podia dizer que a música tem a sua própria arquitetura, mas aquilo a que eu me quero referir é que a música consegue por si só transmitir as emoções humanas com mais precisão do que qualquer outra arte. Mesmo se não houvesse compositores profissionais, a música nasceria de qualquer forma, mais cedo ou mais tarde, e seria a música do povo.
Recital de Piano com Domingos António lotou o Auditório do Teatro Municipal de Bragança este sábado, dia 7 de janeiro, pelas 15 horas.
DTM: Quando toca tem o público em consideração?
DA: Isso é extremamente difícil porque nunca sei quem estará a ouvir, mas um profissional tem sempre que ter um ouvido crítico como se ele próprio fosse um elemento do público. No entanto, um músico acaba sempre por tocar para si, o que é uma maneira completamente diferente do que tocar para o público.
DTM: Para quando uma nova composição? Uma nova peça?
DA: Eu já tive ideias no passado, mas nunca cheguei a passá-las para o papel. Fiz umas improvisações e gravei-as há uns anos em cassetes e minidiscs. Mas, ultimamente, não tenho tido muitas ideias para compor. Tenho estado bastante parado em termos de composição e carreira musical, até porque tenho um projeto audiovisual e não tenho tido muito tempo. E o instrumento também ajuda muito porque um bom piano com acústicas de qualidade inspiram para compor e não tenho tido muitas oportunidades ao longo dos últimos quatro anos para atuar em público. De facto, este foi o primeiro concerto em quatro anos.
DTM: Atualmente, continua-se a compor música clássica?
DA: Hoje em dia existem formas híbridas. Ou seja, géneros musicais modernos com influência clássica. Agora, existem alguns compositores que reclamam dogmaticamente de serem eternos. Mas eu acho que a maioria da música antiga da época pré-romântica, para mim, chegou ao fim. E eu sei que vou ser criticado e reprovado por dizer isto, mas, na minha opinião, o prazo de validade da maioria da música pré-romântica, ou seja, composta antes do século XIX, já expirou.
DTM: Quais são os artistas, compositores, pianistas, que idolatra ou que vê como uma referência, que o inspiram?
DA: Compositores pianistas tenho meia dúzia. Entre os que já não são vivos, tenho Franz Liszt e Schumann. Entre os vivos, tenho dois pianistas russos que idolatro, que estudaram no mesmo conservatório que eu, mas um pouco mas velhos, já que andavam dois ou três anos mais avançados que a minha turma. São o Denis Matsuev e Vazgen Vartanian. Mas o meu pianista de eleição é mesmo o Vladimir Horowitz (1903 – 1989).
DTM: Só para terminar, quando se referem a si como um génio da música clássica o que é que pensa ou o que é que diz a essas pessoas? Antes de mais, considera-se um génio?
DA: Não! Não me considero um génio. Tenho um talento, sim, mas um génio é muito difícil manifestar-se e na música não acredito que seja um génio e mesmo que fosse é muito difícil ser reconhecido enquanto tal porque, hoje em dia, um génio não é reconhecido. O que é reconhecido, atualmente, é a imagem, a projeção, a interação com o público. Mas um génio não é reconhecido!
DTM: Acha mais fácil um génio ser reconhecido após a sua morte?
DA: Eu não acho! Eu tenho a certeza. Felizmente, alguns durante a vida foram reconhecidos, mas isso quase nunca acontece. Muitos são só incompreendidos.