Intrigado com a grande faixa verde onde lê «Por um Sabor livre» junto aos arcos de Miragaia, um garoto abeira-se do ambientalista José Teixeira, embrenhado nas explicações aos jornalistas. «O que é o Sabor?», pergunta de chofre, apanhando desprevenido o interrogado, que responde ser um rio muito bonito ameaçado por uma barragem que o pode destruir. Com o Douro largo como vizinho da frente, o miúdo duvida. \"Destruí-lo?! Mas não o podem destruir!\", vai a dizer escada abaixo.

Apesar de ter deparado com pelo menos um céptico, a Plataforma Sabor Livre (PSL), que ontem à tarde promoveu uma acção de rua diante da Alfândega do Porto, teve mais oportunidades de sensibilizar a opinião pública para os riscos que corre o vale do rio Sabor desde que o Governo aprovou a construção de uma barragem no troço final dos seus 120 quilómetros. Nenhuma construção existe nesse corredor de água que nasce na fronteira, junto a Bragança, e desagua no Douro, no concelho de Torre de Moncorvo.

O último rio selvagem

As seis organizações não governamentais portuguesas - Quercus, GEOTA, Liga para a Protecção da Natureza, FAPAS, SPEA e Olho Vivo - que criaram a PSL querem que continue assim por considerar que o impacto ambiental da barragem do Baixo Sabor será enorme para a pequena produção de energia hidroeléctrica que se pretende alcançar.

Prevê-se que 0,6 por cento da energia consumida no país seja alimentada pelo Sabor, quando, alegam, é possível poupar 30 por cento do que se gasta actualmente com medidas de consumo sustentável. E quando existe essa alternativa, não há razões para destruir o \"último rio selvagem de Portugal\" com dois estatutos de conservação europeus (Zona de Protecção Especial e sítio da Rede Natura 2000) e onde se encontra o último retalho intacto do património natural do Douro transmontano, alegam.

A submersão de parte do vale vai afectar uma comunidade animal e vegetal única no país, sustenta a PSL, autora de um manifesto contra a barragem que foi assinado por 250 pessoas, quase todos cientistas e investigadores. No corredor do Sabor, há arbustos de buxo, sobreiros, azinheiras e oliveiras. As escarpas do vale albergam aves com estatutos de conservação, como a águia de Bonelli, a águia real, o abutre do Egipto e a cegonha preta.

A organização Bird Life International classificou o vale como Zona Importante para as Aves. Na região, vivem ainda comunidades de lobos, toupeiras de água, lontras, gatos bravos e corços.

A PSL alega que a destruição dos habitats será irreversível e as consequências sociais dramáticas, pela inundação de terrenos de elevada fertilidade e pelos prejuízos às actividades económicas (como desportos aquáticos, agricultura e turismo rural) dependentes do rio. Além do mais, sustenta, a avaliação comparada entre o aproveitamento hidroeléctrico do Baixo Sabor e Alto CÎa mostrou que o impacto ambiental da construção da barragem no CÎa é muito menor, apesar de ser mais cara e tecnicamente mais complexa.

Governo processado

Todavia, uma vez que a legislação comunitária entende que o interesse ambiental se sobrepõe aos outros, a PSL pretende contestar judicialmente a decisão do Governo e mostrar que não há interesse público em destruir o ecossistema. O argumento de que a energia da barragem servirá para cumprir as metas do Protocolo de Quioto não colhe, segundo José Teixeira.

\"Se ultrapassarmos as metas de Quioto, a multa para a emissão de 150 megatoneladas de CO2 que a barragem poderá evitar emitir é, em moeda antiga, de 300 mil contos. Para quê fazer um investimento de 50 milhões de contos para poupar 300 mil? \", questiona o biólogo, lembrando que a própria EDP admite que a barragem será irrelevante na contenção das cheias do Douro.

Para Pedro Couteiro, do Núcleo de Estudo e Protecção do Ambiente da Associação Académica da Universidade de Trás-os-Montes, tudo se explica pela errada perspectiva política dos quatro autarcas dos municípios afectados, iludidos pelo transitório desenvolvimento económico. Só isso permite, na sua opinião, que se projecte a barragem a quatro quilómetros da única falha tectónica activa do país, na Vilariça.

\"Isto não é só uma perspectiva conservacionista, é muito mais do que isso\", refere o estudante que, tal como a PSL, encara o vale como uma oportunidade de enriquecimento local através do turismo de natureza.

O movimento contra as grandes barragens

A contestação da Plataforma Sabor Livre está longe de ser inédita. Por todo o mundo, ONG tentam provar que as grandes barragens causam impactos ambientais e sociais muito grandes e são demasiado caras para os benefícios que trazem. Por isso é que os ambientalistas escolheram realizar a acção de rua diante da Alfândega, onde hoje começa o congresso \"Hydro 2004\", um encontro internacional sobre a produção de energia hidroeléctrica, subordinado ao tema \"A New Era for Hydropower\".

A plataforma promoveu conferências sobre o tema, mas a ideia não era competir com o congresso, mas deixar claro que \"há um conhecimento acumulado que mostra que as grandes barragens não são uma solução de futuro. Têm um grande impacto para a curta duração de tempo que têm e não têm grandes benefícios\", afirmou José Teixeira.

\"Há muitas experiências com grandes barragens e o que se sabe é que os benefícios são sempre muito mais pequenos do que o previsto\", disse aos jornalistas Peter Bosshard, da \"International Rivers Network\", uma ONG americana dedicada à protecção dos rios de todo o mundo.

Convidado pela PSL a participar na acção de rua (Bosshard estava em Portugal para assistir ao congresso Hydro 2004), o americano não hesita em atribuir as culpas aos interesses egoístas. \"Há alternativas, mas há um grande interesse em construir grandes barragens\", disse, explicando sucintamente porquê: \"Os políticos procuram prestígio, os burocratas procuram grandes orçamentos, os construtores procuram grandes contratos, os bancos procuram grandes empréstimos - há um grande complexo de instituições que lucram com estas barragens, mesmo que a sociedade pague um preço.



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