O arqueólogo Rui Gomes Coelho disse à Lusa que os acontecimentos ocorridos em Cambedo, Trás-os-Montes, em que a população apoiou republicanos espanhóis são um exemplo de ética de solidariedade sob condições extremas.

A aldeia de Cambedo foi cercada e alvo de tiros de morteiro em 1946 por causa do auxílio que a população civil portuguesa prestava aos combatentes republicanos espanhóis que formaram grupos de guerrilha depois da vitória nacionalista.

A seguir ao fim da Guerra Civil de Espanha (1936-1939) membros do Exército Republicano não se renderam e “foram para o monte” acompanhados de civis que se sentiam injustiçados pela repressão franquista.

“Em dado momento organizam-se e formam Federações de Guerrilheiros que contavam que no final da Segunda Guerra Mundial os Aliados acabassem por libertar Espanha e eventualmente Portugal porque nesses grupos guerrilheiros encontravam-se portugueses”, explica Rui Gomes Coelho.

O arqueólogo do Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa, atualmente na Brown University, Estados Unidos, estudou a existência de uma rede de solidariedade ao longo da fronteira portuguesa de apoio aos republicanos, nomeadamente na zona de Chaves.

“Por causa disso, o Governo Português, sob grande pressão de Madrid, decide intervir. Primeiro é enviada a Guarda Nacional Republicana para acabar com essa insurgência na fronteira”, refere.

O caso mais emblemático ocorre em dezembro de 1946 em Cambedo, onde um grupo de guerrilheiros relativamente conhecido na região fronteiriça com a região espanhola da Galiza utilizava a povoação portuguesa como retaguarda.

“Houve uma denúncia e a GNR atuou na perseguição dos guerrilheiros. Observam que o alvo militar se confunde com a população civil, uma situação frequente nas operações de contrainsurgência. De repente começa um tiroteio e montam o cerco à povoação”, relata, acrescentando que uma Secção de Morteiros do Batalhão de Caçadores de Chaves bombardeia a povoação.

“É um episódio de guerra numa aldeia transmontana, em 1946. Os factos estão muito vivos na memória local. As forças portuguesas acabam por capturar e matar os guerrilheiros que se encontravam na zona. Um deles, Demétrio, galego, é enviado para o Tarrafal” (campo de concentração português em Cabo Verde), indica o arqueólogo.

Segundo Rui Gomes Coelho, em Espanha verifica-se uma situação “extraordinária” no final da Guerra Civil que corresponde à instalação de um acampamento disperso com vários postos numa zona do sudeste de Orense, a norte de Bragança, na montanha, a que os guerrilheiros chamavam “Cidade da Selva” e que acabou por ser “desbaratada” pela Guardia Civil.

“No ano passado fomos a Cambedo, fizemos a escavação numa casa civil que foi bombardeada. A proprietária ficou sem casa própria para o resto da vida dela. O Exército bombardeou-lhe a casa e ficou uma ruína, preservando aquele evento como se fosse uma ‘Pompeia’”, recorda.

Os arqueólogos confirmaram que houve um bombardeamento contra uma população civil no local em 1946, tendo sido encontradas “várias coisas da casa da senhora” e até estilhaços das granadas de morteiro.

Nos anos 1990 os republicanos espanhóis de Orense edificaram no local um monumento (“Em Lembrança do Vosso Sofrimento”) como uma forma de homenagear uma aldeia que acolheu refugiados e guerrilheiros e que ficou para sempre marcada durante a ditadura portuguesa.

Esta semana, Rui Gomes Coelho integra uma equipa de investigação na Croácia sobre os acampamentos e hospitais da resistência à ocupação alemã e italiana durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

"Esta nossa arqueologia da hospitalidade vai ao encontro ao que está neste momento a acontecer na ex-Jugoslávia, e na região de Drežnica onde trabalhamos. Trata-se de um corredor migratório muito importante de refugiados e outros migrantes do Médio Oriente ou Ásia central, que atravessam os Balcãs em direção à União Europeia", afirma o investigador

Durante o trabalho de campo arqueológico os investigadores encontraram vestígios destas migrações atuais.

"Não é uma coincidência que os migrantes escolham esta região para escapar em direção a uma vida mais segura, tal como durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar das tensões locais em torno desta questão, há um espírito de acolhimento que pretendemos tornar mais visível através do nosso trabalho", frisa.

Os trabalhos sobre a Croácia podem ser objeto de uma monografia e artigo científico sobre os acontecimentos em Cambedo deve ser publicado em breve numa revista de arqueologia do Brasil.



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