O secretário de Estado que veio a Bragança receber os emigrantes, na fronteira de Quintanilha, também visitou, na sua passagem pelo distrito, um ex-emigrante muito especial.
Depois da tropa em África, emigrou para França com a esposa, onde, há 24 anos, perdeu 90 por cento da sua validez física. Forçado a deixar o seu ofício de estucador com apenas 36 anos, João Fernandes dedicou-se, ainda no país de acolhimento, à aquisição e restauro de relógios, despertadores e de parede, sobretudo.
João Fernandes diz ter aprendido tudo sozinho, e sublinha mais que uma vez no relato da sua história, a "paciência" inerente a este tipo de trabalho, que mesmo assim não deixa de considerar um "milagre" que lhe aconteceu.
E o gosto por este passatempo tomou tal importância na sua vida que chegava a percorrer 200 e 300 quilómetros por dia à procura de relógios pelas feiras de antiguidades.
João Fernandes é inicialmente tímido a falar, mas depois volta-se para os cerca de cem relógios de cuco que lhe enchem as paredes da garagem de casa, em Quintanilha, e o entusiasmo do seu discurso sofre sucessivas inflações. Uma das mais significativas acontece quando fala do seu preferido, aquele que a cada hora certa, faz sair do pequeno postigo por cima dos ponteiros algumas pequenas crianças que dançam, em roda, ao som de uma alegre melodia. "E ainda não falei deste", prossegue, exibindo outro dos seus favoritos.
No seu processo de auto-aprendizagem foram muitas as experiências a que recorreu para corrigir ou fazer funcionar os ponteiros há muito imobilizados. Assim, beterrabas começaram por servir de molde para fazer os pesos de alguns deles, e em mais que um a campainha inexistente foi recuperada por meio de latas.
Para tudo encontrava uma solução, até para a falta de mostrador, que substituiu por uma sertã, num simples relógio de parede, e por uma caixa de bombons, noutro. O facto é que todos, os simples e os de cuco, funcionam, e se todos estivessem sincronizados, seria melhor fugir a cada quarto de hora. É também por motivos de ordem sonora que João Fernandes nem sempre dá corda aos seus quase 300 despertadores. Normalmente, fá-lo apenas três vezes por ano, e apenas porque é preciso que eles funcionem de vez em quando. "É como os carros", exemplifica. E cada vez que o faz, tem que reservar duas horas para o efeito.
Vender qualquer das suas peças está fora da questão. Aliás, nunca vendeu nenhuma.
Ao lado da paixão pelos relógios, que terá surgido quando o pai lhe deu o primeiro, ainda "pequenito", João Fernandes cultiva a paixão pelos carros de bois, que também aprendeu a construir, ostentando, ainda, a sua colecção de soldadinhos de chumbo, feitos por si ao pormenor. O artesanato é, em suma, o que lhe dá "prazer". "A melhor coisa que há" acrescenta. E um dia ainda há-de fazer marionetas, garante. Outra paixão que tem vindo a adiar.
E é este gosto pela vida, recuperado após um infortúnio, que leva João Fernandes, agora com 62 anos, a apelar a todos os "inválidos", que "não se deixem desmoralizar", mostrando, com o seu exemplo, que há alternativas à comiseração. É que, como ele próprio diz, "a vida continua".