Nos dez anos do mirandês como segunda língua oficial de Portugal, os estudiosos da «lhéngua» alertam: apesar de não estar em perigo, o mirandês está ameaçado pela modernização, sendo importante criar mecanismos para a sua manutenção.

O mirandês sobreviveu ao longo dos séculos devido, principalmente, ao isolamento da região em que a língua estava inserida e ao facto de ser transmitida através da tradição oral. Ora, actualmente, com a globalização e consequente \"ameaça\" de outras línguas, mais faladas através dos mais diversos meios de comunicação, os riscos são iminentes.

Na opinião de António Bárbolo Alves, investigador e escritor da língua mirandesa, o mirandês é, de facto, uma língua ameaçada, mas não em perigo. \"O mirandês dispõe de algumas circunstâncias favoráveis à sua manutenção, já que obteve um reconhecimento político e uma convenção ortográfica para a normalização da escrita. Agora, faltam medidas de preservação inerentes do reconhecimento pelo Estado, que já deveriam ter sido incrementadas como o ensino oficial do mirandês nas escolas \", observa.

E salvaguarda: \"Fala-se muito do mirandês, mais tenho sérias dúvidas de que se fale mais mirandês que há dez anos\".

No que diz respeito ao ensino da língua, parece haver unanimidade no seio da comunidade de linguístas e investigadores do mirandês. \"Desde que o ensino seja alargado e se criem condições para que o mirandês seja, aos poucos, reconhecido como uma língua de Portugal, e não só dos mirandeses, e que internacionalmente possa também ser reconhecida e estudada em várias universidades, o mirandês tem o seu futuro assegurado,\" garante Amadeu Ferreira, escritor de língua mirandesa e um dos seus investigadores mais activos.

Este estudioso vai mais longe ao afirmar que \"as leis não mudam a realidade, só criam condições para que essa mudança aconteça, mas a mudança depende das pessoas e das instituições. O que se passou é que os mirandeses não quiseram esperar que a lei desse resultado por ela mesmo, mas trataram de arregaçar as magas e trabalhar, tornando a acreditar que era possível começar uma nova era para a sua língua\".

O investigador crítica: \"A lei do mirandês não foi tão longe como deveria. Pouco mais trouxe do que o reconhecimento dos direitos linguísticos\".

Outro dos pontos que há a ter em conta e que poderá fazer o mirandês dar o salto em frente - perspectiva comum a todos os estudiosos, investigadores e falantes do mirandês - é a criação de uma instituição central apoiada pelo Estado que faça desenvolver a língua.

Por outro lado, também se considera fundamental assinar a Carta Europeia das Línguas Regionais e Minoritárias, do Conselho da Europa. Outro dos anseios é o de integrar o mirandês no serviço público de rádio e televisão, dando o tempo de antena correspondente à sua representatividade.

Além disso, Júlio Meirinhos, ex-deputado e considerado o \"pai\" da lei do mirandês, considera essencial o reconhecimento oficial da língua mirandesa, mas também o seu ensino e, com ele, uma carreira docente para os professores de mirandês e a criação de uma instituição central para a defesa da \"lhéngua\".

\"A língua mirandesa é um produtos turístico vendável, já que há turistas que se deslocam à região só para ouvir falar a «lhéngua»\".

Duarte Martins, professor de língua mirandesa, salienta a perspectiva docente: \"Era muito importante que o mirandês fosse leccionado em pé de igualdade com o português e deixasse de ser o parente pobre do ensino das línguas nas escolas\".

Sete mil pessoas falam um idioma que conta séculos

O mirandês é uma língua falada no nordeste transmontano, ocupando uma área de influência de cerca de 500 quilómetros quadrados, com principal incidência no concelho de Miranda do Douro e parte do concelho de Vimioso.

A «lhéngua» teve a sua origem num dos romances peninsulares formados a partir do latim vulgar, nomeadamente no asturo-leonês, pelo que pertence ao grupo das língua românicas. Sofreu grande influência do português, sobretudo a partir do século XVI, e foi conservada nas aldeias envolventes como língua de transmissão oral.

No entanto, o mirandês foi dado a conhecer ao Mundo como uma forma diferente de falar em 1882, pelo filólogo José Leite de Vasconcelos. O processo de normalização da \"lhéngua\" foi iniciado em 1995, com a publicação de uma Proposta de Convenção de Língua Mirandesa.

O renascimento da língua mirandesa, após um período em que o seu único embaixador era o já falecido padre António Maria Mourinho, surge em 1986, com o início do ensino do mirandês na então Escola Preparatória de Miranda do Douro, pela mão de Domingos Raposo, o primeiro professor a leccionar o mirandês como disciplina opcional.

Estima-se que o número de falantes do mirandês não deverá ultrapassar as sete mil pessoas.

Um texto, duas línguas

L diabo que nun acreditaba n Einfierno

Era ua beç ua nuite d Abril i ua manhana cansada i frie. Habie tamien ua bruxa spierta, mui spierta, i un diabo buono. Nesse die la bruxa lhebantou-se cedo, mui cedo, quando la manhana inda staba ambrulhada cun la nuite i l diabo nien sequiera suonhaba cun l die. Ancuntrórun-se ls quatro cumo eiqui se cunta, sien tirar nien poner, nien nada acrecentar. Nun era nien de nuite nien de die nien a la hora de l meio die. Era an ne tiempo an que todo acuntece sien nada se ber i pouco se saber.

Apuis que las mantas la botórun fuora de la cama la bruxa passou ua mano molhada pu ls uolhos de la cara, l suferciente para se sentir fresca, i botou la nariç de fuora de casa. Indas que mal se bisse, l fresquito de la manhana i la cisca galhega yá deixában adabinar un die zbulhado i quaije primaberil. Debagarico i sien muita priessa, l Eimbierno alhá iba salindo. Acunchegába-se a las nuites, inda grandes i frescotas, teimando contra las purmeiras campaninas i pies de burro que sálen a saber de l sol an nes balhes mais abrigados i soalheiros.

O diabo que não acreditava no inferno

Era uma vez uma noite de Abril e uma manhã cansada e fria. Havia também uma bruxa esperta, muito esperta, e um diabo bom. Nesse dia a bruxa levantou-se cedo, muito cedo, quando a manhã ainda estava embrulhada com a noite e o diabo nem sequer sonhava com o dia. Encontraram-se os quatro como aqui se conta, sem tirar nem pÎr, nem nada acrescentar. Não era nem de noite nem de dia nem à hora do meio-dia. Era no tempo em que tudo acontece sem nada se ver e pouco se saber.

Depois que as mantas a puseram fora da cama, a bruxa passou uma mão molhada pelos olhos da cara. O suficiente para se sentir fresca. PÎs o nariz de fora de casa. Ainda que mal se visse, o fresco da manhã e o vento galego já deixavam adivinhar um dia descascado e quase primaveril. Devagar e sem pressa, o Inverno lá se ia embora. Aconchegava-se às noites, ainda grandes e fresas, teimando contra as primeiras campainhas e pés-de-burro que saem à procura do sol nos vales mais abrigados e soalheiros.



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Andava à lenha

Deslocavam-se ao hospital