Os dois anos de pandemia foram sinónimo de “prisão” e “solidão” para os idosos residentes em lares, e vão deixar traumas que instituições como a Santa Casa da Misericórdia de Bragança se preparam para enfrentar.

A maior instituição social do distrito de Bragança foi das primeiras onde entrou o novo coronavírus, no outono de 2020, com 30 óbitos só no mês de outubro e quase todos os utentes infetados, num balanço final de 150 idosos positivos e cerca de 40 mortes.

Ana Rita Afonso, hoje com 91 anos, foi das poucas que “não acusou” positivo ao vírus, mas chorou “muita lágrima de noite” com a dor das perdas que já teve na vida, agravada pelo medo de que a covid lhe leve os que lhe restam.

“A minha neta é enfermeira, ainda é mais perigoso, e os bisnetos estão nos estudos e é o que me preocupava mais. A mim não me preocupava, porque eu estou na idade de ir andando, tanto dá morrer de um mal como morrer doutro”, desabafou à Lusa.

A pandemia “tem sido dolorosa” para esta idosa que está há 12 anos no lar e estava habituada “a muita visitinha”, que agora rareia.

A falta de “vista e de ouvido” obrigaram a que deixasse de ver a televisão e as notícias que a afligiram no início da pandemia, quando via “os sítios atacados”, alguns onde tinha conhecidos.

“Chorei muita lágrima de noite, custou-me muito. Agora parece que já botei (pus) mais o coração ao largo porque já não ouço, já não estou com aquele sentido todo do que se está a passar”, contou.

Escapou ao vírus que entrou uma vez na casa (no lar) e causou uma reviravolta nas vidas de todos e pela qual ninguém esperava.

“Os que não acusaram nada fugiram logo connosco para outro lugar e os que acusaram foram para o nosso, andámos assim quase um mês fora do nosso lugar”, recordou, partilhando que desde essa altura mudou tudo, desde a roupa, ao quarto, à colega, às rotinas.

“A minha vida mudou, a gente agora sente-se aqui, dias e dias, assim sem ver, às vezes ninguém de família, ninguém conhecido, a gente sente-se mais triste, sente-se mais em baixo. É a parte mais difícil”, considerou.

Liberdade já há alguma, pois já vão “à missinha todos juntos, já se transita mais um bocadinho”.

No interior do complexo onde estão as três Estruturas Residenciais para Idosos (ERPI) da Misericórdia de Bragança, a máscara é o que continua “a afligir mais um bocadinho”, num momento em que o provedor, Eleutério Alves, garante que a instituição está “a entrar na normalidade”.

Tudo aquilo que foi separar, dividir, afastar pessoas, afastar os próprios utentes uns dos outros, das famílias, isso está tudo ultrapassado, como disse à Lusa o responsável da instituição que não tem casos positivos há um ano.

Os idosos “começam a respirar” pois “já andam sem máscara no exterior, começam a ter as visitas normais, com a máscara e o distanciamento social, no interior e mais livres em espaço aberto”.

O provedor admite, no entanto, que “vai haver traumas, quer nos trabalhadores, quer nos utentes”.

Foram “dois anos muito complexos, muito complicados, em que os utentes estiveram dentro da mesma instituição sem poder conviver uns com os outros, separados fisicamente, com barreiras físicas”.

Alguns idosos “não conheciam a cara dos colaboradores, os que entraram neste tempo (de pandemia) e passados dois anos nunca viram a cara do cuidador”.

Ângelo Fernandes conhece a sensação de quando acordou, depois de ter regressado do hospital onde esteve internado em estado grave, num quarto onde não conhecia quem estava a falar com ele porque andavam de máscara e com os fatos “estranhos”.

“Agora da covid estou bem, mas estive muito mal, não dou fé de nada (não me lembro de nada), levaram-me para o hospital e quando me trouxeram para aqui vi um desconhecido ao pé de mim, do outro lado da cama”, partilhou com a Lusa.

O desconhecido morreu “logo para o outro dia”, sem que Ângelo tivesse sequer falado com ele.

Da doença ficaram sequelas: “Agora, quando baralha o tempo, ainda tenho arrepios disso e fiquei um bocado esquecido da memória”, disse.

A covid-19 “mudou tudo” na vida deste idoso, “não com respeito às empregadas” que continuam “amigas”, mas desde que lhe disseram que “não podia ir ver família, filhos, nem nada”, que não podia sair dali.

“O que me custou mais foi estar aqui preso e não ir ver a família. Senti-me assim meio desprezado, não era bem desprezado, mas parecia-me a mim que faltava alguma coisa. Deitava-me e depois pensava muito. Punha-me na cama e dizia nunca mais vejo a minha casa, nunca mais vejo isto, nunca mais vejo aquilo, a gente fica triste”, contou.

Embora já tenha ido a casa no Natal, a pandemia deixa-lhe a sensação de que foi para o lar à procura de companhia, depois de perder a mulher, e ficou sozinho.

O vírus deixou-lhe também a experiência dos testes, que só de os ver fazer na televisão já fica “arrepiado”.

Tem falado com a médica sobre o que sente, expresso nas lágrimas que escorrem pelo rosto deste homem de 95 anos, que encontrou um escape, também das “saudades” do filho e da neta, no regresso aos trabalhos manuais, que já fazia antes da pandemia.

“Passa-me o tempo mais depressa e tiro aquele delírio da cabeça. Se estiver só no quarto, já está uma pessoa a pensar”, enfatizou.

Ana de Jesus fez passar estes dois anos “a correr” a escrever poemas, que até foram publicados num livro e que lhe serviram para expressar o que lhe ia na alma.

Aos 81 anos, a preocupação de agora é a mesma do início da pandemia, a de não querer transmitir aos outros, o que a leva a, apesar das saudades, abdicar dos almoços e dos encontros com o irmão e a cunhada.

“Ainda hoje não quero que eles venham cá porque tenho medo”, afirmou, contando que testou positivo ao vírus, mas nunca esteve preocupada consigo porque estava assintomática.

Fechada no lar, escrevia, fazia crochê, estava sempre entretida, “de maneira que o tempo voava”, inclusive com participações em encontros ‘online’ de escritores e autores.

Diz que “a única marca da covid é não poder ir aos familiares, passar as festas sem poder ir”, mas a verdade é que já pode, mas não vai com a justificação de que o irmão e a cunhada são mais velhos e não se sente à vontade.

Anita, como é conhecida, confessa que também sente “falta de ver caras”, que as máscaras teimam em tapar.

Os lares terão agora pela frente um trabalho de recuperação das marcas que a pandemia deixou e que se revelam num “retrocesso a nível mental e físico” nos idosos, como observou o provedor.

Eleutério Alves garante que a instituição que dirige está preparada “com bons quadros técnicos para trabalhar essas áreas”.

“Nós estivemos dois anos a separar pessoas e agora temos que fazer um esforço - estamos já a fazê-lo - de voltar a juntar as pessoas, de fazer com que as pessoas acreditem que é possível viver em proximidade e em família”, vincou.

Helena Fidalgo, da agência Lusa, Foto: António Pereira



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