A gestão da Santa Casa da Misericórdia de Valpaços (SCMV) e a actuação do próprio provedor denotam várias irregularidades, segundo dois relatórios de inspecções da Segurança Social e da Inspecção Geral da Saúde, aos quais o JN teve acesso.
Na sequência da primeira inspecção, de âmbito financeiro, depois de denúncias, e de uma segunda no âmbito da saúde, em que a Misericórdia foi seleccionada por amostragem, a instituição será obrigada a pagar à Segurança Social mais de 200 mil euros, pelo menos, entre regularizações de contribuições, devolução de comparticipações e outras.
Por exemplo, no que toca à Unidade de Apoio Integrado, a Misericórdia de Valpaços nunca cumpriu o acordo de 20 utentes, assinado em 1999. A tutela sugere \"a renegociação do acordo e devolução dos montantes a mais transferidos, entretanto\".
Nos relatórios evidencia-se, ainda, o caso do \"provedor, que recebe verbas regulares mensais fixas, configurando um vencimento, que embora aprovado em assembleia geral, não consta nos estatutos, e sem que este apresente qualquer justificativo legal\".
Para além disso, e ainda segundo denúncias que deram azo à inspecção financeira, o provedor seleccionará os utentes \"em função dos bens que possuem, com exigência de peças em ouro, até serem esquecidas pelos proprietários ou pela morte dos mesmos\", entre outros bens referidos, incluindo um terreno.
A inspecção concluiu, ainda, que \"as mensalidades cobradas não assentam em qualquer cálculo fundamentado, sendo antes fixadas discricionariamente pelo provedor, o que contraria os normativos em vigor\".
Para além disto, há donativos, gratificações e vencimentos sem recibo ou comprovativo; compras de medicamentos e até de várias viaturas sem documento justificativo legal, sem esquecer as várias discrepâncias nos registos, \"não havendo fiabilidade na informação prestada\". Há também utentes a frequentarem, ao mesmo tempo, várias valências, confusões nos processos e numerosos erros contabilísticos, sem esquecer os trabalhadores a recibo verde, mas com funções de trabalhadores dependentes, entre outras.
Provedor \"tranquilo\"
Confrontado com as conclusões dos dois relatórios, o provedor Eugénio Morais, diz-se \"tranquilo\", nega as irregularidades e assegura que tem como provar que não cometeu o que lhe é imputado. Quanto à acusação de que estará a receber uma verba mensal fixa, uma espécie de salário, ao contrário do que prevêem os estatutos, Eugénio Morais esclarece que o que recebe é \"um valor simbólico por tempo perdido\". Além disso, afirma que \"já se está a preparar a revisão dos estatutos nesse sentido\".
O provedor diz também que é \"absolutamente falso\" que não existam critérios no que diz respeito às admissões. \"Damos prioridade às situações em que o internamento é mais urgente e não se reparara se o utente é rico ou pobre. Em segundo lugar, temos em consideração o grau da situação económica\", explica, revelando que, por exemplo, e há cerca de um ano, \"há quatro utentes que não pagam nada\".
O provedor diz ser \"falso\" que a Misericórdia se apodere do ouro dos utentes. \"Até dizemos aos familiares para que as pessoas tragam o menos possível, por causa de eventuais roubos\", revela, apontando que, \"quando a pessoa entra é feita uma relação dos objectos, que, em caso de morte do utente, são entregues à família\".
No que ainda diz respeito ao pagamento dos utentes à Misericórdia, o provedor garante que \"nunca se exige nada\", que o valor é \"acordado\" e que no seu cálculo entra também o património.
Eugénio Morais garante, ainda, que nada é comprado sem factura e tudo está justificado.
Quanto ao facto de a Misericórdia estar a receber, no âmbito da Unidade de Apoio Integrado, por 20 utentes, quando, muitas vezes, o número de idosos lá internados é inferior, justifica \"Nós temos capacidade para 20, se não estão lá a culpa não é nossa!\". Por outro lado, salienta que existem despesas de funcionamento quer haja ou não utentes.
O provedor considera \"irrisório\" o valor da comparticipação da Segurança Social por utente (400 euros)\" e admite a necessidade de \"alguns acertos para com a Segurança Social\".
Donativos depois da morte também levantam suspeitas
No relatório do Instituto de Segurança Social, pode ler-se que \"verificou-se a existência de donativos à Santa Casa da Misericórdia de Valpaços de Aníbal Diegues, utente do Lar de S. José, falecido no dia 7 de Fevereiro de 2004\". No entanto, os donativos \"realizaram-se através de depósitos em numerário, no montante que o utente tinha em carteira, após o seu falecimento, e por transferências bancárias das contas do utente para as da instituição\". Mais \"estes movimentos ocorreram a 10 de Fevereiro de 2004\", ou seja, \"três dias após o falecimento\". Segundo Eugénio Morais, o utente em causa \"doou tudo à Misericórdia\". \"Temos uma escritura em nosso poder a prová-lo\", diz, acrescentando que \"após a sua morte, foi um familiar que foi levantar o dinheiro, entregando-o à instituição\". \"Nós não tocámos num tostão\", afirma. No relatório, todavia, pode ler-se que \"não consta qualquer autorização do utente no sentido de proceder à doação dos seus valores à instituição em caso de morte\".