As descobertas recentes no Parque Arqueológico do Côa, resultado da investigação permanente ao longo dos últimos 30 anos, revelam a existência de uma continuidade entre os períodos Paleolítico e Neolítico, o que coloca essa investigação na vanguarda a nível europeu.
O argumento é defendido pelo arqueólogo Mário Reis, da Fundação Côa Parque, em entrevista à agência Lusa, poucos dias depois de revelada a descoberta de rochas pintadas entre as mais de 1500 com motivos, já identificadas neste santuário da arte rupestre classificado como património mundial, numa altura em que se assinalam 28 anos desde a criação do Parque Arqueológico do Vale do Côa (PACV).
"É importante ter em conta que a investigação no Vale do Côa nunca cessou nos últimos 30 anos e nunca houve novidades como as descobertas recentes em que a pintura na rocha é uma outra forma de arte neste território, onde predomina a picotagem ou a abrasão", explicou à agência Lusa o arqueólogo Mário Reis.
A identificação deste tipo de arte, através da pintura, numa pesquisa apoiada pelo recurso a avançadas técnicas digitais, coloca o Vale do Côa na vanguarda da investigação da arte mesolítica a nível europeu, ao "preencher o vazio" entre o Paleolítico e o Neolítico, segundo o investigador.
"A nível europeu, salvo exceções, não havia uma continuidade da arte mesolítica, que parecia ser pontual. O Côa está na vanguarda porque vem afirmar a continuidade no tempo deste tipo de arte em que impera a pintura nas rochas", indicou o arqueólogo. Por outras palavras, e ainda segundo o investigador: "A vanguarda do Côa é dizer que isto deve ser uma coisa normal", que a existência desta arte mesolítica, "que descobrimos, não deve ser encarada como exceção, mas que deverá existir por essa Europa fora, nomeadamente no tocante à pintura".
Embora o período Mesolítico seja visto como de transição entre o Paleolítico e o Neolítico, as manifestações identificadas surgem como exceção, havendo mesmo correntes que defendem não ter havido uma continuidade direta entre os dois períodos. As descobertas no Vale do Côa apontam para o contrário.
"A nível europeu, o que falta é descobrir [essa arte] e entendê-la. [...] E só será descoberta com a aplicação de novas técnicas digitais e com a revisão geral dos sítios já conhecidos. Foi o que fizemos no Côa", acrescentou Mário Reis.
Desde 1991, ano em que foi descoberta a primeira rocha gravada no Côa, todos os anos tem havido novas descobertas que envolvem equipas de investigadores da Universidade de Coimbra, algo que Mário Reis define como notável e que o público em geral desconhece.
"Neste momento há 1.511 rochas com motivos", identificadas no Parque Arqueológico do Vale do Côa.
O arqueólogo disse que há sempre novidades a aparecer no PAVC e vão continuar a surgir nos próximos anos, porque o processo de investigação, na prática, ainda está no começo e há muito mais por descobrir neste território, já reconhecido como o maior santuário ao ar livre da arte rupestre do Paleolítico Superior.
"Estamos apenas a aflorar as primeiras camadas de informação existente no Parque. Ainda há dezenas de anos de investigação" pela frente, vincou Mário Reis. Além do mais, uma descoberta "nunca se faz de uma só vez e uma coisa leva a outras", acrescentou.
No terreno está o projeto LandCRAFT.5, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, que teve início em 2020 e que permitiu, pela primeira vez, colocar a descoberto pinturas da chamada arte levantina da pré-história pós-paleolítica.
"Nós sempre soubemos que houve uma quantidade artística no Côa ao longo de mais de 30.000 anos. Sempre se prestou mais atenção à arte paleolítica, gravada seja por picotagem, incisão, raspagem ou por outras técnicas. A pintura quase nunca apareceu, mas sabíamos que haveria trabalhos de outras épocas, como a Idade do Ferro e também da pré-história [mais] recente", explicou.
O arqueólogo indicou que tudo indicava haver pinturas no Vale do Côa da chamada arte esquemática, com a sua característica figurativa, que já acompanha o início da primeira economia produtora, que conduz ao sedentarismo, e não apenas recoletora.
Durante o trabalho de campo, foi possível aos investigadores, através da fotografia de alta resolução e com auxílio de instrumentos digitais, confirmar a existência de pinturas nas rochas, agora descobertas.
"Conseguimos detetar novas rochas, que são uma novidade, que vêm preencher um vazio sobre o se que passou entre o Paleolítico e o Neolítico, onde a figura humana é mais abundante. Nestas novas composições pintadas [está já representada] a interação de homens, mulheres e animais", numa exposição que sugere cenas do quotidiano, o que antes não acontecia. "Agora temos uma arte sub-naturalística mesolítica", explicou Mário Reis.
No Vale do Côa, a utilização da pintura em arte rupestre surge quantitativamente de forma reduzida, face à predominância da gravura no decurso dos longos milénios anteriores, em que signos e imagens foram sendo ali criados.
"Esta limitação quantitativa não se reflete na sua relevância científica [...]. No contexto de uma síntese sobre os principais conjuntos de pintura pré-histórica nesta região, que se podem dividir em três grupos principais, cronológica e culturalmente subsequentes, será trazida à estampa notícia preliminar de uma das mais surpreendentes revelações que o Vale do Côa guardou para o século XXI: a presença de composições pictóricas que denotam uma clara afinidade estilística com algumas manifestações de Arte Levantina", indicaram os investigadores da Universidade de Coimbra nos seus estudos.
O Côa é conhecido, sobretudo, pela gravura rupestre. Os investigadores estão cientes de que, ainda hoje, surge ao incauto e distraído visitante perguntar por "grutas e pinturas", certamente com os clássicos modelos da arte paleolítica em mente. "Mas a geomorfologia da região, com os omnipresentes painéis verticais de xisto plenamente expostos aos elementos, tendencialmente lisos e de suave textura, favoreceu, desde sempre, a realização de gravuras".
Não surpreende assim que no complexo rupestre do Côa, onde se conhecem neste momento 1511 rochas com motivos, com 1409 registos em 98 sítios, dos quais 1377 são afloramentos decorados (vulgo "rochas"), apenas em 32 registos se encontram para já vestígios de pintura, com 31 rochas em 15 sítios, a que se juntam algumas peças da arte móvel do sítio do Fariseu.
"Ou seja, a pintura surge em apenas dois por cento dos registos da arte do Côa, e em 16% dos seus sítios de arte rupestre. O panorama é semelhante no tocante à contagem dos motivos, ainda provisória e em face de profunda revisão no âmbito do projeto LandCRAFT.5", indica a investigação a que a Lusa teve acesso.
Assim, tomando os motivos por referência, de acordo com a investigação, num total de quase 14.800 já inventariados em toda a arte do Côa, o universo pintado reduz-se atualmente a perto de quatro por cento, em linha com a raridade dos registos. Ou seja, neste momento, somam-se cerca de 600 manifestações identificadas, entre manchas informes e motivos já individualizáveis, no universo da pintura com recurso a pigmentos.
A raridade, no entanto, como denotam os investigadores, não equivale a insignificância.
Do LandCRAFT.5, investigação conduzida pelo Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, fazem parte Lara Bacelar Alves, que lidera, João Muralha Cardoso, Mário Reis, Vera Caetano, Bárbara Carvalho, Beatriz Comendador Rey, Andrea Martins, Teresa Silva, Susana Lopes, Fernando Carrera Ramírez, Teresa Rivas Brea, António Batarda Fernandes, José Santiago Pozo António, Pablo Barreiro, Andrew Jones e Hanna Sackett.