Dezanove anos depois, a octogenária Lídia Pires desceu à cidade de Vila Real para cumprir a tradição e participar na Feira de São Pedro onde vende peças de barro negro de Bisalhães que ainda ajuda a decorar.
Depois de dois anos cancelada por causa da pandemia de covid-19, a feira de São Pedro, que inclui a tradicional feira dos Pucarinhos, com a venda do barro preto de Bisalhães, regressou hoje às ruas do centro da cidade de Vila Real.
As barracas de venda de roupa, malas, brinquedos ou farturas dominam o certame, mas no largo da Capela Nova estão montados dois ‘stands’ de barro negro, cujo processo de fabrico Bisalhães foi inscrito em 2016 na lista do Património Cultural Imaterial que necessita de salvaguarda urgente da Unesco.
Há 19 anos que Lídia Pires não vinha à feira de São Pedro. Tem 87 anos, é viúva de oleiro e hoje está a vender peças feitas pelo genro, mas que também ajudou a decorar, um trabalho que tradicionalmente é feito pelas mulheres.
“Estou a gostar, pois estou. Esta era a nossa arte”, afirmou à agência Lusa.
Também por isso, estes são dias de recordar o passado e revelar memórias.
“Antigamente era esta rua toda cheia até lá em baixo e ainda dava a volta, tudo cheio de louça”, referiu, acrescentando que, em Bisalhães, o barro negro era a arte de toda a povoação.
Agora, aponta, muitos morreram, outros arranjaram empregos e foram poucos os descendentes que se mantiveram na olaria.
“Tenho um neto que ainda gostava de aprender, mas a vida dele não dá para isto”, contou.
Tradicionalmente a olaria era um ofício protagonizado por homens, mas muito do trabalho era feito pelas suas mulheres.
“Eles moldavam o barro, mas nós é que picávamos o barro, amassávamos, íamos ao monte buscar lenha para a cozedura e nós é que fazíamos os desenhos das peças e ainda tratávamos da casa”, contou Lídia Pires.
Algumas das peças expostas na feira foram cozidas na segunda-feira nos tradicionais fornos de Bisalhães. A cor negra das peças é o que desperta a maior curiosidade.
“Há pessoas que acham que é pintado, há outras que pensam que o próprio barro já é mesmo preto. Nós explicamos que é o método de cozedura completamente atípico que lhe dá a cor negra e as pessoas ficam admiradas com o trabalho que dá e, principalmente, com o resultado final”, referiu o oleiro Miguel Fontes.
As peças que nascem pelas mãos dos artesãos são cozidas em velhinhos fornos abertos na terra, onde são queimadas giestas, caruma, carquejas e abafadas depois com terra escura, a mesma que lhe vai dar a cor negra.
Maria Teixeira é da aldeia de Guiães e veio à cidade de propósito comprar umas peças de barro para oferecer à neta. “Vai ter prendinhas como a avó tinha antigamente”, contou, referindo que comprou potes e panelos em miniatura.
Na sua juventude, lembrou, as crianças vinham comprar estas peças para o jogo do panelo. Este jogo, em que as peças vão passando de jogador em jogador até partir, vai ser recriado esta noite pela companhia de teatro Filandorra.
Miguel Fontes realçou que a classificação pela UNESCO deu outra visibilidade ao barro negro o que resultou numa maior procura. A arte, contou, aprendeu com os avós em Bisalhães.
“O meu objetivo é manter a tradição da feira dos Pucarinhos. Nos últimos anos antes da pandemia estava sozinho, mas hoje já estamos dois. É um bom sinal”, salientou.
A vereadora do pelouro da Cultura, da Mara Minhava, realçou o esforço da Câmara de Vila Real em “retomar a tradição”.
“Temos a noção de que não vamos conseguir os milhares de púcaros junto à Capela Nova, mas o facto de conseguirmos que mais oleiros venham e se reavive esta tradição já é muito bom. Neste momento temos dois, mas contamos ainda ter mais dois”, sublinhou.
Mara Minha destacou que é preciso dar a conhecer “a importância desta arte” que, cada vez mais, tem de deixar de ser um passatempo e ser encarada como um negócio e uma oportunidade de trabalho.
Para o efeito, salientou que em julho arranca um curso de olaria com 12 formandos, na aldeia de Bisalhães, e que vai ter alguns dos antigos oleiros como formadores.
“Estamos só a tratar das questões logísticas”, frisou, sublinhando que este é o “passo mais importante nesta caminhada para a preservação do barro preto”.
A Feira de São Pedro prolonga-se até quarta-feira a são muitas as pessoas que também aproveitam para cumprir uma outra tradição, a de comprar cuecas, alegando que dá sorte para o resto do ano.
Hoje será também representada a peça de teatro “Um turista no Marão”, que retrata as “vendedeiras” de barro negro que mesmo sem saber outras línguas conseguiam vender as peças aos turistas, há também a festa da “noite negra”, as atuações da banda filarmónica de Mateus e de Richie Campbell.
Na quarta-feira atua Rui Veloso e a festa acaba com fogo de artifício.
Paula Lima, da agência Lusa, Foto: Armando Martins