Duas grandes ideias sobressaem da conferência sobre as "Origens do Cristianismo", realizada na sexta-feira passada, em Macedo de Cavaleiros: "a revolução que constituiu para a humanidade o momento em que a partir do terceiro dia, após a morte de Jesus, se difundiu a ideia da sua ressurreição e a expansão (e fundação) do cristianismo através de Paulo". Assinalada foi ainda a ideia de que "grande valor para o cristianismo é o Homem, assente no princípio de que não é o homem por causa do sábado, mas o sábado por causa do homem".

O debate sobre as origens do cristianismo, incluído no ciclo de conferências "2000 anos de cristianismo", organizadas no âmbito da Agenda Cultural da Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros, realizado na sexta-feira passada no auditório do Instituto Jean Piaget, constituiu mais um êxito, a avaliar, não só pela afluência de público (cerca de 200 pessoas), mas também pela sua origem (de alguns concelhos do distrito, e não só).

A maior curiosidade recaiu sobre a intervenção de frei Geraldo Coelho Dias, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, docente da cadeira de História das Religiões, cuja prática nestas lides ficou expressa logo na introdução que fez citando o "chocante" título do livro "Deus morreu em Jesus Cristo", da autoria de um escritor francês contemporâneo, para marcar o sinal de contradição que para alguns revela "tal mistério".

Frei Geraldo, cuja prática de vida comunitária diz professar, contribuindo com o seu ordenado de professor universitário, baseou a sua intervenção na "centralidade da personalidade de Jesus", cuja doutrina, "sem pretender escandalizar ninguém", está entre os católicos portugueses, numa "situação de conhecimento ao nível da escolaridade primária". A sua abordagem "evangelho de Jesus sobre o evangelho de Jesus" merece, por isso, a explicação de que, "antes dos evangelistas (Lucas, Mateus, Marcos e João), houve, "de facto", o evangelho pregado por Jesus". Considera o professor que "o processo genético sobre os evangelhos é um processo vivo e comunitário, uma espécie de selecção de factos e pregações" onde se revela "a teologia pessoal de cada evangelista tendo em conta a variedade de comunidades para quem eram dirigidos" os textos.

"Estamos no ano 2006"

Segundo Coelho Dias, "não existe uma biografia de Jesus. O que há é "quatro narrativas paralelas escritas por homens de fé, para pessoas de fé, pois Jesus, antes de ser reconhecido como Deus, foi reconhecido como Messias", fundamentando esta tese na asserção de que "o Novo Testamento está latente no Antigo, tal como este está no Novo". É nesta perspectiva que encara a fidelidade de "Jesus ao Antigo Testamento", como forma de "alimentar o espírito messiânico no Novo". Aliás, "o ambiente da época era escatológico, como que se adivinhando o que se iria passar", não lhe parecendo ser por acaso que "Jesus é apresentado por Mateus como Moisés, no sermão da montanha, primeiro sinal da passagem da lei de Talião (dente por dente), para a lei da caridade, pregada por Jesus".

"Jesus da História e o Cristo da fé" é, segundo o conferencista, um tema que tem interessado as várias gerações dos dois últimos milénios", pois é reconhecido desde os filósofos do iluminismo até aos do racionalismo que "Cristo não é um mito, nem uma invenção. É uma figura histórica". Para esta conclusão, não falta sequer, na perspectiva do professor, "o contributo de um escritor judeu do ano 70" que o refere como "homem extraordinário, se é que homem se lhe pode chamar".

Pretendendo situar a vida pública de Jesus, de acordo com os evangelhos, frei Geraldo é de opinião que "não estamos no ano 2001, mas certamente estaremos no ano 2006", pois segundo alguns evangelistas, "a vida pública de Jesus durou um ano, enquanto João (dos primeiros discípulos a seguir Jesus) diz que foram três".

A religião de Paulo

Outro tema controverso é o do rumo que levou a igreja, a partir do ano 70 ("da igreja pregada por Jesus até à igreja cristã"). Por isso é que o conferencista disse que "Jesus nunca quis fundar uma religião" e alega que "a igreja é um movimento e não uma religião". Para o frade, esta "nasce a partir de Paulo", considerando-o mesmo "o grande arauto da religião", a ponto de alguns considerarem que esta até poderia ter adoptado "o nome de paulianismo, em vez de cristianismo". Saulo que era "um intelectual da diáspora dos judeus" transformou-se no "apóstolo dos gentios", a partir da "sua conversão às portas de Damasco".

A história do "projecto de expansão" do cristianismo, levado por Paulo a Chipre, Grécia e "provavelmente até à Península Ibérica", foi o tema da intervenção do segundo orador, Armando Martins, professor da Universidade Clássica de Lisboa, natural de Vale Benfeito (Macedo de Cavaleiros). As convulsões, as crises e o modo como a igreja as ultrapassou, nos primeiros séculos de cristianização, foram os aspectos dominantes do seu discurso. Na sua perspectiva, a cristianização de Portugal fez-se de sul para norte, sendo certo que só a partir do século IV é que começaram a aparecer as primeiras literaturas sobre esse processo.

"O socialismo utópico do princípio"

No debate que se seguiu, José Brinquete, dirigente do PCP, de Bragança, observou que o segundo orador prescindiu dos evangelhos e baseou-se mais na narrativa histórica, concluindo daí que "o cristianismo do primeiro orador não é o mesmo do do segundo". Respondendo, já em jeito de conclusão, frei Geraldo esclareceu que "o cristianismo não pode ser dominador", devendo, pelo contrário "ser a semente da mostarda". Na sua perspectiva, "o império caiu mas a igreja também se imperializou", residindo neste facto "o grande perigo". Para ele "não é só acreditar que Jesus é Deus incarnado, mas também que ele é homem". Por isso, não acredita "na igreja poder", mas sim "na igreja sacrifício", até porque "o ambiente primitivo da comunidade cristã é pobre". "Foi o socialismo utópico do princípio descrito nos Actos dos Apóstolos", conclui.



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