Celmira Macedo sofreu o estigma de ser ‘retornada’, viu-se segregada por professores e alunos e sofreu dois acidentes vasculares cerebrais quando vivia “a 300 kms/h”, circunstâncias que transformou num projeto premiado internacionalmente que pode ensinar 650 milhões de pessoas.

A Ashoka, organização fundada em 1981 nos Estados Unidos, e referência mundial na área do empreendedorismo e inovação social, distinguiu na segunda-feira Celmira Macedo como uma das melhores do mundo em ambas as áreas e a Lusa foi descobrir quem é a mulher por detrás do projeto com sede em Vila Nova de Gaia.

Na base do prémio está o EKUI, uma metodologia de aprendizagem multissensorial inclusiva que associa às letras do alfabeto os seus sons e a forma de os produzir (alfabeto fonético), a língua gestual, os movimentos motores e o código Braille.

Filha de pai português e mãe angolana, chegou a Portugal em 1976, com cinco anos, e assim que entrou na escola, em Leiria, sentiu o “estigma” de ser ‘retornada’: “chamavam-me preta, mesmo sem o ser”, contou do que ouvia no recreio onde muitas vezes se viu “sozinha”.

Mas não era tudo, pois na sala de aula “o problema continuava”, relatou sem esconder a emoção: “os professores gabavam-me a inteligência, mas ao mesmo tempo desconfiavam, dizendo que não fazia sentido por ser ‘preta’”.

“Na altura não me pareceu trágico e, quando fui viver para Alfândega da Fé, voltei a sentir o estigma”, contou de um tempo e de uma circunstância que a fez perceber que “na escola, tinha de trabalhar o dobro para provar que era igual aos outros”.

Premiado o seu esforço no final do “12.º ano com notas para entrar em Direito na Universidade de Coimbra”, a falta de “recursos financeiros da família impediu-o”, optando então pelo ensino, procurando “ajudar quem não teve ajuda”, referiu.

O primeiro emprego teve-o na ilha da Madeira, num jardim de infância, e ali conheceu a criança que lhe traçou o rumo de vida: “ela tinha osteogénese imperfeita [doença dos ossos frágeis] e poder ajudá-la todos os dias fez-me apaixonar pelo ensino especial”, contou Celmira.

“Transportava-a diariamente ao colo para que tivesse qualidade de vida e para poder fazer todas as atividades que os outros fizessem, sem colocar em risco a sua saúde”, recordou, entre sorrisos.

Anos depois, colocada em Vinhais, no distrito de Bragança, percebeu que precisava de saber mais para “ajudar crianças em idade escolar, bem como os seus pais” e começou um doutoramento em educação especial na Universidade de Salamanca, em Espanha, disse.

“Fruto desta aprendizagem, desenvolvi escolas para os pais deste tipo de crianças e adultos, preparando-os como cuidadores informais”, disse sobre o que foi a base do EKUI - Equidade, Conhecimento (Knowledge em inglês), Universalidade e Inclusão - hoje presente em 320 localidades e 419 escolas do país.

A vida passou a ser a “300 km/h” e isso custou-lhe, “entre os 35 e os 40 anos, sofrer dois AVC”, acrescentou a professora.

“Foi num período em que acumulava o ensino, com o EKUI, as escolas de pais, o doutoramento, a formação de professores e a criação de uma associação para dar apoio aos filhos desses pais”, recordou.

No meio da “vertigem” em que viveu, Celmira Macedo soube “em 2016 que o que fazia era, também, empreendedorismo social”, altura em que foi premiada pelo INSAED [Instituto Europeu de Administração de Empresas], uma das escolas mundiais de empreendedorismo social”, assinalou.

Com manifestações de interesse “a chegarem da Finlândia e de Espanha” para a aplicação do sistema que criou, Celmira Macedo lamentou estar “há cinco anos à espera de uma reunião no Ministério da Educação” para que o seu sistema deixe de ser aplicado “apenas por interesse e vontade dos professores, para passar a figurar como ferramenta oficial de ensino”.

“Temos uma metodologia muito forte nas mãos, que não existe em mais lado nenhum do mundo - e por isso recebeu o apoio da Ashoka -, e que pode chegar a todos numa altura em que no mundo há 650 milhões de pessoas que diariamente têm barreiras na sua aprendizagem e comunicação”, acrescentou sobre o sistema que passou a ser o seu projeto de vida.

Jorge Fonseca, da agência Lusa



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