António Modesto Navarro, nascido em 3 de Fevereiro de 1942 em Vila Flor, evidencia toda a arte literária através do seu autodidactismo e riqueza vivencial.

Artur Cortez é a segunda assinatura do escritor, pois tem várias obras sob este pseudónimo. Sempre se destacou como um opositor ao regime e, após o 25 de Abril de 1974, aderiu a ideologias da extrema esquerda.

Escritor e publicista, foi um dos fundadores da Associação Portuguesa de Escritores, pertencendo, também, ao último Concelho de Redacção da Seara Nova. Está representado em livros escolares com textos sobre emigração e guerra colonial, tendo sido convidado pelo escritor José Saramago a desempenhar o cargo de redactor da agência de publicidade Ciesa.

Jornal Nordeste (J.N.) – Orgulha-se de ser transmontano?
Modesto Navarro (M.N.) Orgulho-me de ser transmontano e duriense. Como me orgulho de ser português e cidadão do mundo. As minhas raízes mais profundas e valiosas estão na Terra Quente transmontana e em Trás-os-Montes. Saí de Vila Flor para Lisboa com 21 anos e a minha formação continua assente em princípios e realidades da nossa terra, caldeados com outras experiências que vivi em Portugal e em África.

J.N. – Qual a necessidade de se ocultar através de Artur Cortez?
M.N. – O meu primeiro romance, “Morte no Tejo”, foi escrito em Moçambique, em 1966. Em 1968, publiquei “Libelo Acusatório” e, depois, outros livros, até que, em 1982, peguei no manuscrito de “Morte no Tejo” e entendi que podia publicá-lo. Como se trata de um texto essencialmente lúdico, policial e muito diferente do que já tinha publicado, e porque entendi que era altura de assumir um certo desdobramento da escrita e, se calhar, também de personalidade, publiquei-o com o pseudónimo de Artur Cortez, que depois, em “A Morte dos Anjos” e “A Morte do Artista”, veio a configurar-se mais fortemente na personagem do investigador, que continuou a construir-se em “Morte no Douro”, “O Pântano” e “O Deputado”. Não foi ocultação, portanto, até porque assumi desde logo a paternidade de “Morte no Tejo”. Foi a reabertura de um caminho de criatividade no romance policial que, de certo modo, deu início a uma nova fase deste género entre nós, premonitória e necessária porque se iniciava então uma realidade bem triste em Portugal, de corrupção e destruição de sectores importantes da nossa economia que levaram a enriquecimentos súbitos, até de gente colocada a alto nível, nas alavancas do poder. Isso está nos meus livros e em livros de outros autores.

J.N. – Concorda que a pseudonímia valoriza mais a Arte enquanto centralização de um homem inteiro e não a afirmação de uma parcela.
M.N. – Acho que é possível criar pseudónimos que correspondam a áreas e criatividades diferenciadas, no escritor, completando-o no que tem de multifacetado e, até, de imprevisível para ele próprio. Para mim, Artur Cortez é outro e sou eu próprio, com quem convivo quando esse lado do prazer e da descoberta da escrita se afirma e se torna imperioso.

J.N. – Há quem afirme que a sua literatura é de circunstância (ligações ideológico-partidárias). Concorda?
M.N. – Tenho livros mais elaborados e literariamente mais conseguidos e tenho outros livros de levantamento e testemunho que escrevi e organizei para abordar realidades como a emigração em Trás-os-Montes, o atraso milenar de regiões e gentes do distrito de Viseu face à Revolução de 25 de Abril de 1974, a memória do povo alentejano e a reforma agrária depois de Abril. Nunca alguém me deu qualquer indicação para o meu trabalho, nem isso corresponderia àquilo que entendemos no PCP como primordial na liberdade e na responsabilidade da criação artística. Sempre fui livre nas opções e a maior que fiz foi em 1974 e 1975, quando podia ter iniciado uma acção política mais quotidiana e decidi dar toda a minha atenção possível à escrita e à vida criadora e interveniente “como amador que ama a coisa amada” e que se liberta no que faz ou tenta fazer melhor ainda.
Portanto, para desvanecer essa ideia pobre de “engajamento” e submissão empobrecedora, quem escreve e publica há quase quarenta anos só tem de recomendar, a quem julga com ignorância dos factos, que leia alguns dos meus livros e tire conclusões que não sejam malévolas ou precipitadas.

J.N. – Segundo Eça “para possuir uma literatura ideal, forte mas fina, original mas equilibrada, fecunda mas sóbria, será necessário que nela de certo modo se contrabalancem estas duas forças – a Tradição e a Invenção”. Considera, segundo Eça, que as suas obras são ou tentam ser ideais?
M.N. – Quando passamos à escrita, ou os criadores de outras áreas avançam no seu trabalho, queremos sempre fazer melhor, queremos transfigurar, surpreender, descobrir caminhos ainda desconhecidos. Depois, face ao que fazemos, vem a desilusão, o desgosto, a vontade de rasgar e de recomeçar. Outras vezes ficamos siderados por termos andado próximo do que ansiávamos. Essa é a condição humana, a tentação, a dúvida, a insistência, o estudo da obra dos outros, o reinício de tudo, mais uma vez e sempre.
Nós temos o que outros fizeram ao longo dos séculos, o que continua magistral e transfigurador, e temos as mudanças, as velhas e novas realidades que se entrechocam e produzem retrocessos e avanços. Da observação e do sonho do futuro podem sair outras obras que fiquem a marcar o que é inovador e que incentiva positivamente a capacidade de invenção humana.

J.N. – O livro “Morte em Vila Flor” é inteiramente transmontano. Mais que um drama é também uma observação / análise da realidade. Porque adoptou esta visão realista?
O que quis dizer quando afirmou que este livro era como o “recuperar do passado e a ligação à terra”?
M.N. – O livro teve outro título, inicial, que era “O olhar do estrangeiro”. É a possível visão de quem vem da Suécia, perante uma realidade tão diferente e violenta de Trás-os-Montes. Escrevi este romance em 1989 e, como abordava acontecimentos dolorosos também para mim, porque a mulher e o homem que morreram eram amigos e familiares, guardei o texto e só lá voltei nove anos depois, para o trabalhar e, eventualmente, preparar para publicação. O que mais me atraiu e doeu, ao ler o original, foi reencontrar um mundo de agricultura e de vida local que entretanto tinha desaparecido. Daí essa frase de “recuperar o passado e a ligação à terra”. Hoje, a vila quase não tem as dinâmicas dos camponeses e do trabalho que a marcavam ainda na década de 1980/90. O livro impressiona os leitores pela denúncia da violência doméstica e do ciúme brutal que transtorna e leva ao crime. Mas devemos também reflectir sobre o que (não) são hoje os caminhos de trabalho e de criação de riqueza na nossa região, que continuamos a deixar esvair e a desaparecer.

J.N. – O seu último livro intitula-se de “O coração da Terra”. Porquê este título?
M.N. – “O Coração da Terra” veio corporizar um velho sonho meu, de organizar um livro com contos e textos sobre Vila Flor e o concelho, publicados em livros, desde “Libelo Acusatório” até “Histórias do Nordeste”, e com contos ainda inéditos. Resultou também de uma sugestão de Artur Vaz Pimentel, um velho amigo e Presidente da Câmara Municipal de Vila Flor. “O Coração da Terra” é a síntese possível do meu amor à casa onde nascemos onze irmãos, onde nasceu o meu pai e os seus irmãos e para onde vieram morar os meus avós paternos quando casaram. A casa foi destruída, depois de uma perseguição ignóbil de “autarcas locais” a dois velhos, os meus pais. Aí está, na memória e nos livros. Mas o mais importante são as pessoas da vila e do concelho que estão nas histórias e nas fotografias, nos acontecimentos reais e inventados, a marcarem o que não esqueço e o que faz parte do sonho de uma vida diferente e melhor para todos os que trabalham e sofrem.

J.N. – O coração da Terra é em Vila Flor?
M.N. – O coração da terra é onde estamos, é quem amamos e o que queremos desenterrar dos escombros da vida e que continua novo e inovador. É Vila Flor, como acaba por ser Lisboa, ou Bragança, ou Mirandela, desde que, aí, as pessoas que anseiam e querem melhorar a vida se levantem e caminhem, recusando o que está morto e partindo à procura da participação e da vida democrática e transformadora.

J.N. – Qual a catarse maior desta ficção?
M.N. – É a síntese que consegui organizar, com muito trabalho e dificuldade, dado que poderia ter escolhido outros contos e fotografias e tive de fazer opções. Houve uma sessão de apresentação do livro em Vila Flor, em Agosto, e hoje sei que há muita gente que já leu o livro e terá percebido que o que me move, e sempre me moveu, é falar de nós, das ruas, das caras, dos amores e desamores, do trabalho, da fome e das mudanças construídas com sangue, suor, lágrimas e muita dor de perda e de ausência nos que ficaram e nos que partiram porque não tinham outra saída.0

J.N. – Assina que a arte é tudo – tudo o resto é nada – só um livro é capaz de fazer a eternidade de um povo, neste caso o povo nordestino?
M.N. – Digo claramente que é tão importante o livro como o quadro, como a música, como o trabalho no campo, como a actividade na fábrica, no comércio, na empresa; e como o gesto de convívio e de reencontro, da palavra e do silêncio desmedido que às vezes nos assola e espanta. Não vale a pena sublimar isto ou aquilo e impor a sua “totalidade” aos outros. Saibamos relativizar e integrar o livro na paisagem humana que é a nossa. Se o livro, o quadro, a música, o filme e a peça de teatro fizerem parte do nosso quotidiano, então estamos a caminho da eternidade do que é pequeno ou grande e que vive connosco, no nordeste transmontano ou seja lá onde estivermos.

J.N. – Já tem alguma página escrita para mais uma obra?
M.N. – Tenho um romance quase pronto e outro que agora principiou a nascer, no sul e depois no Vale da Vilariça, nas férias de Agosto. Vai levar muito tempo a fazer. O que está quase pronto estabelece a ponte entre Trás-os-Montes e Lisboa através da história de uma mulher que se quer libertar e afirmar como ser digno e independente. Há ainda outro romance que escrevi em 1966, na torre do Farol de Metangula, Lago Niassa, Moçambique, e que agora retomei, hesitando ainda na sua publicação. Passa-se em Lisboa e dá a cidade violenta, pobre, cruel e guerreira desse tempo destruidor que ainda persiste em muitas cabeças saudosas do colonialismo e da barbárie da morte. Em suma, a vida continua e o trabalho literário também.



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