Aos 73 anos, não esquece a actividade que exerceu desde menino.
Nasceu em Gebelim (Alfândega da Fé), mas no seu correr de «Ceca e Meca» a angariar trigo para moer no moinho do seu pai, Felisberto Marçal ficou a conhecer muitas povoações.
Foi nesse deambular de terra em terra, a lidar com a farinha, que um dia, já adulto, foi chamado para tomar conta de uma moagem em Podence. Daqui o conhecimento atraiu-o a seguir para outra, que abriu de novo em Salselas, e da qual se tornou proprietário, passados três anos. Agora, aos 75 anos, sonha com a actividade que exerceu desde menino.
Felisberto Marçal no seu moinho, que há dez anos deixou de trabalhar Felisberto Marçal tem 75 anos, mas ainda não conseguiu esquecer a sua moagem, que fechou há cerca de 10 anos, por falta de clientes. Diz que os tempos mudaram: “Hoje já quase ninguém sementa trigo e poucas são as mulheres que cozem pão.
E as que ainda o cozem, é ao padeiro que diariamente passa pelas aldeias que compram a farinha”. Mas o exercício da profissão de moleiro fê-lo passar por muitas experiências, algumas delas tão amargas como “o pão que o diabo amassou”.
Desde menino, aos oito anos, que passou a calcorrear, “descalço”, os caminhos desde Gebelim (Alfândega da Fé) até “às aldeias das redondezas”. O seu raio de acção, tocando os burros carregados com cereal rumo ao moinho de seu pai, na ribeira de Soeima, ou com farinha para entregar aos clientes, abrangia também povoações dos concelhos de Macedo de Cavaleiros e de Mirandela.
Desse tempo guarda recordações de episódios a que hoje acha alguma graça, mas que na época lhe fizeram passar “as passadas do Algarve”. Como menino que ainda era, para “matar a fome”, recorria, por vezes, a expedientes como o de pedir um copo de água. As mulheres respondiam-lhe que “melhor era pedir um copo de vinho”. E ele aproveitava então a deixa para sugerir que só aceitaria o copo de vinho se lhe “chegassem um naco de pão e uns figuinhos” secos. Quando, devido às “côdeas de geada” que tinha de pisar, no Inverno, as mulheres o interpelavam a sugerir se ainda não ganhara o suficiente para comprar uns tamancos, o rapaz respondia com vergonha que essa decisão cabia ao seu pai.
Na sua tarefa de angariar o cereal para moer, Felisberto abordava as clientes de várias formas. Com “quem tinha mais confiança” não hesitava em utilizar métodos brejeiros, como o seguinte: “Ó senhora Maria, hoje não mo dá”? “Então não te dou o quê”?, respondia a cliente. “O pão”, contrapunha o rapaz. “Agora não tenho tempo de o crivar”, acedia a mulher. “Mas crivo-lho eu”, finalizava o jovem moleiro.
Felisberto não sabia ler nem escrever, mas no acto da entrega nunca trocou os sacos de farinha. Estes tinham um formato próprio. Eram urdidos com estopa e algodão e cada pessoa fazia os seus. Quando os sacos eram parecidos, para não se enganar na entrega, fazia uma cruz num deles.
Depois de ter feito a tropa, o moleiro tentou dirigir o seu próprio destino, procurando trabalho naquilo que sabia fazer. Esta “volta” na sua vida levou-a a trabalhar num moinho no Vieiro (Vila Flor) e posteriormente em algumas moa-gens. A última, antes de assentar arraial definitivamente, foi em Podence. Daqui partiu para Salselas, para onde foi convidado a trabalhar no arranque de uma moa-gem nova. Nesta última localidade conheceu a mulher com veio a casar, nos três anos que ali passou como empregado.
Passado aquele tempo, comprou a moagem, que teve a funcionar durante 30 anos. Na época chegou a ter simultaneamente presas à volta da moagem, de manhã à noite, mais de 12 bestas (burros ou machos), pertencentes aos clientes, que vinham de todas as aldeias em redor. Na época chegou a moer 1.500 quilos de cereal por dia. As maquias rendiam-lhe 100 contos por ano. Há 10 anos, quando os padeiros começaram a demandar com mais assiduidade as povoações, o moleiro Felisberto considerou que chegara a hora de encerrar a sua moagem. Depois disso, rara é ainda a noite em que não sonha com aquilo que sempre foi o seu modo de vida, pelo qual é conhecido e foi apelidado de moleiro.