Uma língua que já conta na sua história mais de nove séculos de existência, alcançou indubitavelmente direitos de perenidade... É esta a certeza de quem se gloria de a amar e de a defender, sempre que as circunstâncias o exigirem.

Li, há alguns dias, no “Mensageiro de Bragança”, de 18/Julho/03, o artigo: «Mirandês: unidade ou divisão?», da autoria do meu amigo Dr. Amadeu Ferreira. É claro que, logo à primeira vista, não me soou agradavelmente, porque levantava uma dúvida inesperada sobre a integridade dessa velha língua.
Ao começar a leitura descobri o que nunca teria imaginado: a minha pessoa era tema central do artigo... Nunca tinha recebido tanta honra em toda a minha vida! Motivo?: o artigo que eu publicara no mesmo jornal, de 27/Junho/03, intitulado: «A verdade sobre o Mirandês e o Sendinês». É verdade que cada indivíduo é igual a si mesmo, mas às vezes até se revela diferente perante os seus semelhantes. Temos mesmo de aceitar este realismo, porque a qualidade dos frutos varia, consoante a qualidade da árvore que os produziu. Até apreciamos determinadas variedades, porque aliciam, e, até certo ponto, satisfazem o apetite. O mesmo apreço deveríamos ter pelo nosso semelhante, se é que todos pertencemos à mesma família humana...
Apraz-me informar o Sr. Dr. Amadeu Ferreira que o seu longo artigo, se pouco me aqueceu, teve, todavia, o condão de me esclarecer sobre a sua maneira de pensar, que, como disse atrás, está de harmonia com a sua singularidade.
Não obstante tudo o que afirmou, sinto-me de consciência tranquila para declarar que não retiro uma palavra ao que escrevi, embora reconheça que deva fazer uma correcção num ponto em que citei o Dr. Vasconcelos, omitindo um pormenor que o meu amigo não deixou de explorar...
Será orgulho de minha parte? Até nem é, pela simples razão de que o meu artigo transcreveu, com fidelidade, o pensar do Grande Mestre.
É contra ele que as suas invectivas deverão ser dirigidas. Faça-o, se tiver coragem. É que foi ele o Descobridor e o Coordenador, tanto do Mirandês (comum à maior parte das aldeias do concelho), como do Sendinês, relativo à aldeia (hoje vila) de Sendim, a que dedicou páginas importantes, dignas de apreço.
Foi esse Grande Mestre que distinguiu, com nomes próprios, esses dois falares que não podemos manchar com a palavra «divisão».
No fundo deste problema (que nem base tem para ser problema), eu vejo uma razão ponderável: o relativo ou diminuído apreço com que se avalia a extraordinária figura do Dr. José Leite de Vasconcelos. Por tal motivo me atrevo a declarar que é, sem exagero, um dos mais notáveis etnólogos e fitólogos de Portugal e da Europa. Senão, vejamos:
Já na sua tese de formatura sobre Evolução da Linguagem, em 1886, mereceu a classificação de o mais distinto estudante. Em 1887 fundou a Revista Lusitana, notável obra de filologia portuguesa: em 1901 concluiu um curso de Letras na Universidade de Paris, com a tese: “Esquisse d’une dialectologie portugaise”, que lhe mereceu o título doutoral “com distinção”. Manteve relações com os maiores filólogos mundiais e produziu para cima de 50 obras.(1)
Tão excelsa e rara distinção obriga-nos a render-lhe o devido preito, inclusive quando se refere ao Mirandês e ao Sendinês, na obra que lhes dedicou.(2)
Quanto à globalização do Mirandês e do Sendinês, apraz-me observar:
1 — Ninguém poderá contestar o facto de o Latim se ter esboroado em várias línguas: Italiano... Português e Mirandês (3)
2 — Nesta mesma linha, temos de admitir que também o Mirandês aparece ramificado em subdialectos: (4)
— Fala-se o Mirandês Setentrional na linha da fronteira.
— Fala-se o Mirandês Central (propriamente dito) ou Normal, em 19 povoados.
— Fala-se o Mirandês Meridional ou Sendinês (sem ramificação alguma), em Sendim.
— Refere-se também a Paradela, cujo falar é distinto de todos os outros falares.
Eu próprio sou testemunha do brio prazenteiro com que os habitantes de Paradela exibem as suas especialidades linguísticas: «mano çadonha, lebre, «çaporra…» e da euforia com que bailam o seu «pingacho»…
Não posso omitir que António Mourinho, referindo-se ao Sendinês, isolou-o de qualquer outro povoado, porque a sua história já inclui elementos que lhe dão muita personalidade.(5)
Perante esta realidade viva, a globalização nesta matéria não passa de uma ideia peregrina, embora moderna, à procura de futuro...
Temos na mão o tempo presente.
— Porque não o aceitamos com orgulho e aquela proua de que já deu brilhante exemplo o Dr. Emílio Pires Martins, no campo do Sendinês?
Importa assumir as lições da história, não vituperando o passado, mas aceitando o presente e procurando enriquecer o futuro.
O Dr. Amadeu Ferreira não concordou com o princípio: “Para que uma língua possa ter-se como se escreve, é indispensável, primeiramente, que se escreva como se fala?» — Acho deveras estranho, porque é um princípio que rege todas as línguas. Talvez não tivesse reparado num pormenor essencial: É que cada língua tem o seu alfabeto, e cada letra desse alfabeto a sua fonologia, precisamente para escrever como se fala.
Sobre a cobertura da «Convenção Ortográfica»
1 — Afirmou o meu amigo que a «Convenção Ortográfica da Língua Mirandesa» é válida para todas as variedades do Mirandês, incluindo o Sendinês.
Trata-se de uma afirmação gratuita, porque do texto da «Convenção», nada se depreende que conforme. — Sim, lamenta-se que não tenha sido feita «Acta» relativa às atitudes tomadas; todavia, os elementos do grupo que preparou a «Convenção» foram concordes e estão conscientes de que o assunto do Sendinês foi adiado para ulterior estudo, o que não chegou a concretizar-se...
2 — Perguntou, por fim, o Sr. Dr. Amadeu Ferreira:
O que é que ficou reconhecido por lei, no campo da ortografia? — Ficou reconhecido o que consta ria «Convenção Ortográfica da Língua Mirandesa».
Em meu entender, a Convenção atinge, directa e simplesmente, as 19 povoações do Mirandês Central e Normal.
Conclusão: Importa aceitar as lições da história, valorizar o presente e procurar enriquecer o futuro.

N. R. — Mensageiro de Bragança dá por encerrado o tema sobre o Mirandês e o Sendinês.
Foi bom, porque foi esclarecedor, ouvir as duas partes.
Prestou-se um bom serviço às duas comunidades.
Resta-nos agradecer, a todos quantos colaboraram, todas as atenções recebidas, inclusivamente o amor manifestado à língua mirandesa, que tem ramificações, como o mirandês setentrional, o central e o meridional e até o mirandês de Paradela.

(1) Para mais completa informação, consulte-se a Grande Enciclopédia Portuguesa Brasileira, vol. 14, sob o nome Leite de Vasconcelos (José).
(2) Estudos de Philologia Mirandesa — dois vol.
(3) Dr. António Mourinho — Diversidades Subdialectais... «O Mirarandês é filha directa do Latim».
(4) Dr. António Mourinho: ibidem.
(5) A obra recente: «Mirandês e Sendinês — Dois Falares», de José Francisco Fernandes — abre um campo maravilhoso sobre a história e o falar de Sendim. Foi enriquecida com um pequeno vocabulário trilingue: Sendinês, Castelhano e Mirandês. É uma monografia de muitíssimo interesse.



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