É pastor a tempo inteiro e cabeleireiro nas horas vagas, mas garante que não corta o cabelo como quem tosquia ovelhas.
Adriano Fernandes, conhecido como "Mantino" nas ruas de Argoselo, é um dos últimos barbeiros da vila e quiçá, um dos poucos do País que se pode gabar de ter rapado a cabeça a 150 recrutas em escassas cinco horas.
Isso mesmo. Foram 150 cabelos aparados a máquina zero, das 17h00 às 22h00, pela mão de Adriano Fernandes, na altura o soldado 93, que tinha a seu cargo o cabelo de todos os homens de uma Companhia do Regimento de Cavalaria de Lisboa.
Passados mais de 50 anos, o COMÉRCIO foi encontrar este pastor e cabeleireiro de 74 anos no salão montado em 1951, após terminar 18 meses de serviço militar.
"Antes de ir para tropa já tinha andado a aprender com os barbeiros mais velhos de Argoselo", recorda Adriano Fernandes. E, como os amigos lhe diziam que tinha jeito para a tesoura e o aconselhavam a "não ir em meias que nem às pernas servem por se romperem", decide estabelecer-se por conta própria no baixo da sua casa, paredes-meias com a igreja paroquial de Argoselo.
É neste espaço que, aos sábados à tarde e domingos de manhã atende a freguesia, depois de pastar o rebanho de 80 ovelhas. "Hoje saí às 7 da manhã e já estive no S. Bartolomeu com os animais", atira Adriano Fernandes, como forma de justificar a abertura da barbearia às 11h00.
Aos sábados o horário é mais alargado. Para despachar a clientela, "Mantino" chega a trabalhar das 14h00 às 23h00, tal como acontecia nos tempos áureos do volfrâmio, em que as minas de Argoselo davam trabalho a 300 ou 400 pessoas. "Ainda ontem cortei 17 cabelos, mas isso não é nada, porque na altura das minas cheguei a ter 400 clientes certos", recorda o barbeiro.
À luz da candeia
Nessa altura, as pessoas que não iam ao salão recebiam a visita de Adriano Fernandes em casa. "Cortava o cabelo a todo o tipo de gente, fosse ao mineiro mais pobre ou ao engenheiros nas casas lá de cima", explica "Mantino", recuando no tempo.
Quando a febre do volfrâmio levava os clientes a fazer fila no salão, o cabeleireiro contava com a ajuda preciosa dos seus cinco filhos, até porque luz eléctrica era coisa que ainda não existia.
Por isso, Adriano Fernandes já perdeu a conta aos cortes de cabelo à luz da candeia ou do gasómetro que também era usado nas minas. "Era eu a cortar com os garotos a alumiarem e foi assim que dei cabo da vista", lamenta.
Mesmo nessa altura nunca conseguiu retirar da barbearia um rendimento à altura da criação de gado, pois "ainda é preciso cortar bons cabelos para fazer tanto como na venda de um cordeiro".
No tempo das minas cobrava cinco e duas coroas pelo cabelo e pela barba, respectivamente. Hoje, o preço subiu para três euros o corte e dois euros o barbear, nada que dê para enriquecer. "Há muito que deixaram este mundo e ainda ficaram aqui a dever, mas também nunca recusei servir um cliente", assevera "Mantino".
Mas, se é certo que o gado dá mais rendimento, o mesmo se pode dizer do trabalho do pastoreio. "As ovelhas dão muito mais trabalho, porque o cabelo sempre se corta ao pé enxuto", explica Natália João, esposa de Adriano Fernandes.
Do casamento nasceram cinco filhos, entre os quais António Fernandes, o conhecido "Toninho" (ou "Perro" para os amigos), que montou salão na Av. Sá Carneiro, em Bragança. Afinal de contas, "filho de peixe sabe nadar".
"Eu não quero ir à máquina zero..."
Corria o ano de 1950. Adriano Fernandes era o barbeiro de serviço numa das Companhias do Regimento de Cavalaria de Lisboa.
No rigor da parada, o capitão repara que dois soldados tinham o cabelo mais comprido do que os seus camaradas. Tudo porque resolveram "rapar o pêlo" num qualquer barbeiro de Lisboa, fugindo à "máquina zero" do soldado 93, o jovem "Mantino" que tinha vindo de Argoselo.
Detectadas as faltas, a ordem do capitão foi clara. "Ó 93 vá buscar um banco e a máquina 4 zeros que temos muito que fazer".
Adriano Fernandes assim fez. As primeiras rapadelas couberam ao oficial, que em duas passagens da máquina fez uma cruz na cabeça de um dos recrutas, para gozo dos restantes elementos da Companhia "Um deles chorava que nem uma criança, mas eu bem lhe disse que passasse por mim em vez de ir a um barbeiro da cidade", recorda o cabeleireiro de Argoselo.
Passada a máquina "4 zeros", não havia sinais de cabelo nas cabeças dos dois soldados. "Ficaram rapadinhos e com a cabeça branca como a cal", relembra Adriano Fernandes.
Dias antes, muito cabelo havia ficado no chão duma das casernas do quartel. "Eram 5 horas da tarde quando o capitão me disse que tinha que rapar a cabeça a 150 soldados que estavam na parada. Peguei na máquina e era uns a entrar e outros a sair da cadeira num serviço que só acabei às 10 da noite", acrescenta o cabeleireiro-pastor.
E foi assim que "Mantino" passou 18 meses de tropa, sem um único dia de licença e com um "pré" de 40 escudos por mês, mais 10 do que qualquer soldado da mesma companhia.
Na década de 50 ainda não existiam as máquinas eléctricas de hoje. "Era tudo à mão", explica o barbeiro,
enquanto retira da gaveta uma máquina zero à moda antiga, que guarda religiosamente.