Quando começou nas lides das peles, há 60 anos, havia 350 peleiros em Argoselo e o negócio “dava pouco”. Hoje quer passar a arte para os mais novos, mas quase não há quem queira agarrar esta vida. É assim a sina de Humberto do Fundo, o último peleiro da vila de Argoselo.
Aos 72 anos, este argoselense de gema relatou ao Jornal NORDESTE episódios duma vida em cima de um burro ou com um fardo de peles às costas, com um carolo de pão no bolso para matar a fome.
Foi assim que Humberto do Fundo se fez à estrada, logo que a vida arredou o pai deste ofício.
Começou bem cedo, “mais ou menos aos 15 anos”, a conhecer os trilhos que ligam Argoselo a Vimioso, pelas encostas de Pinelo, fizesse calor ou frio, numa viagem com socos nos pés que demorava quase três horas. “Tive de continuar a profissão, a carregar as peles às costas, com 2, 3 ou 5 coroas no bolso”, relata.
Mas, nada o fez desanimar. Carros só para os ricos e, para comprar um novo burrico, era preciso ganhar algum dinheiro. Humberto do Fundo assim fez. Começou a ir a Vimioso comprar peles de coelho, “que eram mais leves e davam para as trazer às costas”. Ao cabo de três anos, já tinha arrecadado “7 notas e meia”, que lhe permitiram comprar um jumento. Com a ajuda de um burro a respirar saúde, o jovem peleiro começou a agarrar outras oportunidades, como peles de cordeiro e ovelha ou farrapos de lã, “que já davam outro rendimento”.
Da motoreta à carrinha
O negócio ia de vento em popa, mas o Sr. Humberto não sossegava. Juntou dinheiro para comprar uma “motoreta” de três rodas e às peles juntou o ferro-velho, ramo que, ainda hoje, conserva.
Em 1966 decide tirar a carta, fruto de um desafio lançado por um amigo que também lamenta não ter seguidores. Falamos de José Carvalho, 76 anos, o último latoeiro de Argoselo.
Com a carta de condução na mão e uma carrinha Morris à porta de casa, Humberto do Fundo dá um salto decisivo ao entrar no negócio das peles de bois e vacas, as mais rentável do sector.
A emigração da década 60 leva muitos braços para França, enquanto o peleiro ia fazendo pela vida, em sucessivas viagens de Argoselo para os matadouros de Miranda do Douro e Vimioso, este já extinto.
Na década de 70, as terras francesas continuavam a receber homens e mulheres de Argoselo à procura de novas formas de vida, de modo que o número de peleiros diminui a olhos vistos. “Éramos cada vez menos e quem ficou conseguiu ganhar umas coroas”, afiança o peleiro.
Vem a Revolução dos Cravos e a inflação dispara, mas Humberto do Fundo não se queixa desses tempos. “Foi a época em que ganhei mais dinheiro, porque os preços estavam sempre a aumentar”, reconhece.
Peles estão em extinção
Situação bem diferente vive-se nos dias de hoje. A partir da década de 80 a cotação das peles começa a baixar e a concorrência dos materiais sintéticos encarrega-se, ainda hoje, de complicar a vida aos peleiros. Uma pele de bovino, por exemplo, pode ser comprada a 25 euros e ser vendida a 30, mas a margem de lucro é muito baixa, se contabilizarmos o combustível gasto, o sebo usado na secagem e o tempo que leva a escoar a mercadoria. Isto para não falar do prazo de pagamento…
É por estas e por outras que o negócio tem poucos seguidores. “O meu filho acompanha-me porque esta vida deu-me conta da coluna, mas a pele está em vias de desaparecer…”, desabafa com a emoção estampada no rosto.
Aos 72 anos, Humberto do Fundo continua a fazer-se à estrada, não em cima de um burrico ou duma carrinha Morris, mas duma Toyota Dyna de caixa aberta que já perdeu a conta às vezes que foi a Miranda, Vimioso, Bragança ou Mogadouro. É esta a rota dum homem que não quer ser o último peleiro de Argoselo.